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Cavaleiro da Lua devolve Ethan Hawke às narrativas de penitência que ele domina

Trabalho como Arthur Harrow na série do MCU ecoa filmes como Fé Corrompida e Gattaca

27.04.2022, às 18H30.

Às vésperas do último episódio de Cavaleiro da Lua, já é possível afirmar que a série do Disney+ foi o projeto acertado para marcar a entrada de Ethan Hawke no Universo Cinematográfico da Marvel (MCU). Aos 51 anos de idade e com mais de 90 créditos em sua carreira de ator, o texano é um dos mais prolíficos intérpretes de uma geração, cultivando uma forte associação ao cinema independente e sendo frequentemente pintado como avesso às mega-produções da indústria. Convidado por Oscar Isaac para viver o vilão Arthur Harrow, entretanto, Hawke não só topou o desafio como mergulhou nele de maneira claramente entusiasmada. Sob sua tutela, o personagem é uma suave força ameaçadora, que contrapõe o ruído constante das múltiplas personalidades do protagonista vivido por Isaac com uma violência cordial, mas sutilmente instável.

Com um corpo de trabalho tão amplo, não seria difícil pescar da filmografia do ator alguma temática recorrente, e Cavaleiro da Lua reforça uma das mais interessantes: a da penitência. O conceito da expiação de um erro por meio do sofrimento, presente em muitos dos ritos de fé que conhecemos e cultivamos na sociedade moderna, se faz presente de maneira explícita já na cena inicial da série do MCU. Ao som da espiritualizada canção “Every Grain of Sand” — lançada por Bob Dylan em 1981 como um marco de sua então recém-reavivada fé cristã — Arthur Harrow estilhaça uma taça de cristal e repousa seus pontiagudos cacos no interior das sandálias que irá calçar.

A referência ao cristianismo é mais que justificável, já que especialmente em sua vertente católica, a corrente religiosa mais influente do ocidente teve grande sucesso em incorporar de forma orgânica aos seus dogmas a penitência. Seja por meio de orações, rezas ou promessas, as alternativas menos radicais ao autoflagelo que colore a caracterização de Harrow em Cavaleiro da Lua (sugestão do próprio Hawke, inclusive) fizeram do conceito algo muito mais palatável para o cotidiano. Na série, entretanto, ele é feito extremo e atrelado à devoção do vilão à divindade egípcia Ammit. Considerada uma deusa por ele, a entidade é descrita pela mitologia do país como um demónio fêmea; personificação da retribuição divina para todos os males realizados em vida.

O desejo de levar ao ápice da eficiência a punição de Ammit é o que motiva Harrow a tentar libertar sua fúria sobre o mundo, cruzando a busca por redenção com uma obsessão pela imposição da sua própria versão de justiça a todos que o cercam. Coincidentemente, a confusão entre dois possíveis produtos de uma mesma pulsão é o que move um dos maiores trabalhos de Hawke — e um que parece perfeito para acompanhar e expandir o que o ator traz à cena na série da Marvel Studios. Escrito e dirigido por Paul Schrader, Fé Corrompida (2017) o coloca na pele de um pastor em meio a uma intensa crise de fé, potencializada pelas escaras de um trauma do passado e pelo alcoolismo, que passa a enxergar como parte integral de sua fé o cuidado do meio que habita. Compelido a enfrentar poderes sistêmicos muito maiores que ele, ele acaba dividido entre direcionar violência contra terceiros, como forma de fazer valer a justiça que entende como sua missão, ou contra ele mesmo, para punir-se por sua conivência.

Dois anos depois de Fé Corrompida, Hawke conduziu em um tour de force louvável o dramático Uma Estrada Para Recomeçar (2019), sobre a jornada penitente de um ex-condenado em sua retomada da vida fora da prisão. Em um retrato de sensível humanidade, Hawke internalizou à perfeição o conflito constante que germina da culpa de alguém que, mesmo ciente de ter pago por seus erros, segue preso a uma espiral autopunitiva. E dois anos antes de Fé Corrompida, no semi-biográfico Born To Be Blue (2015), Hawke fez de uma interpretação artística da vida do lendário músico Chet Baker uma jornada errante de penitências, na qual a paixão pelo jazz e a obsessão desencadeada pela dependência química alternaram papéis entre agentes de culpa e de redenção.

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Mas a estrada artística de Hawke por narrativas penitentes data de bem antes dos anos 2000, o que só enriquece o que vemos em tela em Cavaleiro da Lua. Em Gattaca - A Experiência Genética (1997), o personagem do ator se submete religiosamente a uma rotina invasiva de limpeza de seu próprio material genético, a fim de fingir pertencer a uma casta superior de seres humanos gerados em laboratório. No filme de Andrew Niccol, esse rito de autoflagelação é o custo a ser pago para conseguir acesso à realização de um sonho; mais do que essencial para a expiação de um pecado — no caso, sua incapacidade física frente àqueles julgados melhores que ele — é um processo imprescindível para que se possa viver plenamente.

E a sobrevivência é justamente o que força os personagens de Vivos (1993), dramatização da queda real de um avião repleto de esportistas uruguaios nos alpes andinos, a reconfigurar o consumo de carne humana como um tipo de eucaristia. Isolados no gelo, eles recorrem aos cadáveres de seus companheiros caídos como única fonte de alimento, fazendo da fé católica que partilham o lastro necessário para preservar sua sanidade enquanto atravessam o que entendem como uma penitência extrema.

De um ângulo mais secular, cabe até argumentar que as noções de culpa e redenção são tão naturais ao ser humano que cumprem papéis até nos trabalhos mais naturalistas de Hawke, como as colaborações com o cineasta Richard Linklater em Boyhood: Da Infância à Juventude (2014) ou na Trilogia do Antes (1995, 2004 e 2013). De qualquer forma, quando usa sua voz suave e quase monotônica para desnortear Marc Spector, Steven Grant e qualquer outra identidade que exista na mente do personagem vivido por Isaac, em Cavaleiro da Lua, Hawke está fazendo escolhas guiadas por uma compreensão de anos daquilo que move Arthur Harrow. Sorte do MCU. E sorte nossa!