Há só dois momentos em Tilt, novo disco de Irene & Seulgi, que arriscam quebrar de verdade a pretensa sofisticação que marca essa nova investida da sub-unit do Red Velvet - a primeira em cinco anos, diga-se de passagem. O primeiro acontece no comecinho de “What’s Your Problem?”, quando um pianinho ardido e um recorte vocal cheio de reverb nos introduz à canção, seguidos de um trompete que irrompe do instrumental assim que a dupla de vocalistas entoa o título da faixa pela primeira vez. O segundo vem mais para o final do disco, em “Trampoline”, que começa com um teclado abafado mas acaba desaguando num refrão que se define a partir de sintetizadores graves, percussão eletrônica e vocais artificialmente esticados para o agudo, que declamam sem rastro de ironia um convite tentador: “Pula, pula, pula aqui/ Pula aqui como um trampolim”.
A provocação sexual não é nenhuma novidade para os fãs de Irene & Seulgi, é claro. Quando o duo estreou, lá em 2020, ficou conhecido justamente por letras que se insinuavam na direção da sacanagem só para conflagrar essa aproximação com uma narrativa de afirmação de identidade que - junto com a coreografia ansiosa performada pelas artistas - foi rápida e firmemente lida como código queer. Musicalmente, no entanto, hits como “Naughty” e “Monster” brincavam muito pouco com esse texto, se aproximando ao invés disso de um pop de tintas gótico-chic que estava muito em voga na época. Em Tilt, as coisas mudam de figura: aqui, Irene & Seulgi dobram a aposta em sua provocação sáfica, e garantem que o som as acompanhe nesse caminho.
O disco é, na verdade, todo brincadeira - mas parte da brincadeira é te convencer de que elas não estão brincando, claro, e por isso disfarçar a brincadeira de sofisticação. A faixa título, “Tilt”, tem pianos e cordas de sotaque clássico (como “Feel My Rhythm” e “Cosmic”, do grupo-mãe das meninas, o Red Velvet) na introdução e no segundo verso, mas se mostra também um eurodance irrepreensível com sua batida 4/4 e seu baixo sintetizado retumbante, que culmina em um anti-drop delicioso no refrão. “Irresistible” é todo R&B chic dos anos 2000 com seu coro repetitivo entoado em um quase-sussurro pelas cantoras, e sua linha de baixo serpenteante. “Girl Next Door”, composição da infalível Kenzie (responsável por uma bagatela das melhores canções da história do k-pop), troca sua batida propulsiva por uma melodia francamente Britney Spears num refrão de notas esticadas sobre estar apaixonada pela “garota da casa do lado”.
A ideia aqui, claramente, é ressuscitar padrões sonoros de décadas passadas - especificamente, as duas décadas com as quais o público largamente millennial do Red Velvet nutre uma relação nostálgica mais forte. Mas há algo de sujo sobre a forma como Tilt faz isso, um sorriso de lado e uma piscadela que aparecem, como eu disse lá em cima, em detalhezinhos que salientam a artificialidade quase humorística dessa performance de elegância. No fundo, Irene & Seulgi querem mesmo é ser sexy e vulgar - não há outro motivo para “What’s Your Problem?” ser basicamente a irmã perdida de “Hips Don’t Lie” que foi adotada por um bom produtor coreano, com aquele trompetinho e (como se não bastasse!) aquele piano tirado diretamente do hip hop estadunidense na sua era “Still D.R.E.”.
Há sempre um acento aqui, é o que eu quero dizer, ou uma vírgula travessa que entra numa frase na qual não foi chamada. O prazer de ouvir Irene & Seulgi em Tilt é se divertir com o que só é dito de vez em quando, nos espaços e respiros daquela elaboração pop sisuda que ainda é esperada delas, por um motivo ou por outro. Aqui, elas falam (cantam!) em cursiva. Nada mais queer do que uma boa piada de duplo sentido, afinal.