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Jessica Jones e o lado mais sombrio da Marvel

Série de TV sintetiza a HQ Alias, título que serviu de ponto de partida para o selo adulto MAX da editora

06.11.2015, às 16H44.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H40

Criado em 1954 como um organismo não-governamental para fiscalizar o material que era publicado nas HQs dos EUA, o Comics Code Authority já caducava desde os anos 1970 - década conhecida pela liberdade com que Marvel Comics e DC Comics começavam a tratar de drogas, sexo e violência em suas séries - até que acabou definitivamente em 2011, quando o Código foi abandonado pelas duas últimas editoras que ainda seguiam, por protocolo, as suas diretrizes, a DC e a Archie Comics.

A Marvel abandonou o Código em 2001, quando estabeleceu o seu próprio índice de classificação etária, e com essa decisão veio a criação de um selo dedicado exclusivamente a material mais pesado, a linha Marvel MAX. Alias, a série de Brian Bendis e Michael Gaydos que deu origem à personagem Jessica Jones, foi a HQ escolhida para dar a largada no selo, que nos anos seguintes ficaria mais conhecida por controvérsias na mídia (como o resgate do velho pistoleiro Rawhide Kid, que a Marvel tirou do armário e então tornou-se o primeiro personagem assumidamente gay a estrelar sua própria HQ) do que propriamente por suas novas séries.

Se no selo MAX personagens como Justiceiro e Wolverine conseguiram dar vazão à violência inerente às suas personalidades, Alias nunca foi uma HQ pensada só como válvula de escape, um lugar onde sangue e palavrão seriam permitidos. Bendis e Gaydos aproveitaram a oportunidade de introduzir Jessica Jones ao Universo Marvel para tratar de assuntos complexos do mundo feminino - desde a erotização das super-heroínas até as dores da maternidade - e também para mostrar o lado pouco glamouroso do vigilantismo.

Jessica Jones surge em cena em Alias como os velhos detetives particulares das histórias noir: com um passado problemático, escondido à base de dedicação plena ao ofício, e muita bebida. "Philip Marlowe usaria a Internet se pudesse", resmunga Jessica numa das várias referências aos detetives clássicos da cultura pop, que Bendis tenta emular. Como no policial noir, o lado pessoal dos detetives entra em cena pelas bordas. É comum na HQ, por exemplo, quadros repetidos em que o rosto de Jessica sequer muda de expressão enquanto ela escuta os clientes expondo seus casos; a série Alias nos seus melhores momentos serviu para isso, para usar Jessica como canal para tramas mais adultas com algumas situações consagradas das HQs da Marvel, como o ódio contra os mutantes, a relação dos heróis com o governo ou os problemas entre Vingadores.

Do total de 28 edições de Alias, as primeiras duas dezenas se dedicam a acompanhar o dia a dia de Jessica, e só ao final enfim descobrimos as circunstâncias que fizeram a personagem largar o colante de super-herói e se afundar na ingrata profissão de xeretar a vida dos outros. Embora seja mais frequente e esperado que se analise Jessica Jones pelo viés feminista - de uma mulher cujo maior vilão, fonte dos seus principais problemas, é sua baixa autoestima - durante todo o seu começo Alias fez um retrato bem interessante das coisas chatas com que super-heróis nunca precisam lidar: autoridade, burocracia, serviços públicos. Embora Jessica ainda tenha seus poderes, eles não a impedem de ser assediada pela polícia ou virar motivo de fofoca de enfermeiras quando vai parar no hospital. E o fato de acontecer merda ao redor dela o tempo inteiro - azar que todo super-herói tem, mas nem todos dão atenção - se torna para Jessica um martírio.

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Por sua própria natureza, de temporadas mais compactas, a série de TV Jessica Jones da Netflix vai priorizar as duas subtramas centrais de Alias - a relação de Jessica com Luke Cage e com seu nêmesis, o vilão Homem-Púrpura, fundamental para a história da "segunda origem" da personagem - e deve deixar de lado esses vários casos pequenos que ocuparam boa parte da HQ. De qualquer forma, a adaptação para a TV deve dar uma síntese bem fiel do espírito mais sombrio que a Marvel nos quadrinhos tentou imprimir ao seu selo MAX.

Talvez a obrigatoriedade de conter essas histórias mais violentas e obscuras tenha causado o esgotamento rápido do selo, que só foi um sucesso de vendas nas histórias do Justiceiro. A Marvel nunca deixou, porém, de abrir espaço em outros selos mais ecléticos para um tom mais adulto, como aconteceu na linha Epic nos anos 1980 e 1990, com a Marvel Knights e hoje com o selo Icon. Vamos esperar que o eventual sucesso da série de TV possa dar a Jessica Jones um novo espaço para retornar aos quadrinhos, onde quer que seja.

Jessica Jones estreia na Netflix no dia 20 de novembro.