O sexo e a verdade, uma nova cultura pop
São lançados simultaneamente em DVD no Brasil a primeira temporada da série americana (HBO) Sex and the city e seis novos episódios de Os normais (sem cortes), programa semanal da Rede Globo.
Apesar de Sex and the city ser sucesso há anos nos Estados Unidos, somente agora o espectador brasileiro tem chance de conferir o impacto desta sitcom. Foram poucos que a viram na HBO brasileira e no canal Multishow (da NET) que atualmente exibe o programa. Estes canais não têm audiência que possa ser chamada de popular.
Sex and the city deve ser vista em uma sentada só. Os episódios são curtos, engraçados, agudíssimos, hiper bem produzidos e - mais do que isto - tratam do tema que ainda é dos mais excitantes: sexo. Não o sexo como ato, mas o que gira ao seu redor: estética, poder, sedução, amizade, ousadia. Enfim, libidinagem dos dias modernos. As histórias têm como núcleo um quarteto de mulheres liberadas, solteiras, lindas e inteligentes.
Os normais segue a mesma linha. Apesar de os protagonistas serem um casal que nunca se casa, as personagens que variam a cada episódio entram para esquentar a divertida e eterna discussão sobre a intimidade. O seriado tem a irreverência típica brasileira. Sempre cede à tentação de fazer rir.
O DVD que agora é lançado tem cenas não exibidas na televisão. É aí que está a diferença. Além dos mais variados palavrões da língua brasileira, são inseridas cenas com erros de gravação, o que deixa claro o quanto atores e equipe de produção estão sintonizados com a série. Durante as gravações, há pouca diferença entre Fernanda Torres e Vani, sua personagem.
Talvez seja este o segredo do sucesso destas séries que passam a dominar o mercado televisivo americano. Alguns programas como Friends, Will & Grace ou 24 horas (mega-sucessos que sucedem Cheers e Seinfeld) têm produção, salários e convidados especiais dignos de Hollywood. Aqui não nos interessa falar do aspecto comercial, que é evidentemente crescente, mas do impacto popular. Estas e outras séries viraram mania que ultrapassa a fronteira americana.
No Brasil, além de Os normais, as globais A grande família e agora Carga pesada têm audiência comparável ou às vezes superiores às telenovelas. Até A turma do gueto surpreendeu pela Record.
Os temas destes programas são absolutamente diversos das tradicionais novelas ou minisséries. O romance cede lugar ao cotidiano. Isto está mais próximo da realidade dos espectadores, o que provoca maior possibilidade de identificação com as personagens, os novos heróis.
A televisão a cabo americana avançou ainda mais. Além de Sex and city, uma das pioneiras, A família Soprano (sobre mafiosos de New Jersey), Oz (uma prisão de segurança máxima), A sete palmos (uma família dona de funerária) e Os assumidos (amizade e amor gay) foram muito mais longe do que qualquer produção cinematográfica.
Seriados são populares desde o início da televisão. O Brasil já importava nos anos 60 e 70 I love Lucy, Os intocáveis, Batman, A feiticeira, Jornada nas estrelas... mas são programas conservadores (quando o assunto é família) ou de ficção.
As novas séries só apelam para a fantasia se for para ousar. Em Os assumidos (Queer as folk), o sexo, as baladas são tão impressionantes que o espectador duvida que isto realmente aconteça. A produção ajuda: são seqüências bem filmadas, câmeras que rodopiam, música contagiante.
Em Sex and the city, Nova York é mais glamurosa do que nunca. O quarteto só freqüenta restaurantes e lojas da moda, estão sempre bem vestidas, andam com gente bonita...
A família Soprano traz a mesma violência dos filmes sobre máfia, mas suas personagens são estranhamente afetivas. Os espectadores pouco se importam se os protagonistas são assassinos-sanguinários-com-requintes-de-crueldade.
Em Oz, a prisão só tem gente interessante, apesar de escória da sociedade. O local é tão limpo, que qualquer um pode comer no chão, mas por estarem trancafiados - muitos para sempre - o desafio é criar uma existência possível no aprisionamento.
Todas estas séries abordam sexo de todo tipo, mas esta é apenas uma das vias. As situações exageradas de todas elas servem para falar do cotidiano com um outro e diferente cenário. Que interesse haveria agora em mostrar pessoas comuns com problemas comuns?
Este é o grande segredo de A sete palmos. Uma estranha família que dorme com cadáveres no porão, (por ofício, são donos de funerária), é composta pelos tipos mais comuns: a mãe controladora que é apanhada de surpresa pela morte do marido e passa a ter devaneios eróticos, o filho gay que teme se assumir, a filha adolescente rebelde e o mais velho que volta ao lar após o falecimento do genitor. A aproximação constante com a morte (em cada início de capítulo, há uma delas) torna urgente a solução dos problemas simples. O tempo é curto, a vida breve.
Aliás outro segredo destas séries é que as personagens fazem coisas, modificam-se, evoluem. Isto é bastante diferente dos programas mais tradicionais da televisão aberta. Em Friends, algo custa a acontecer. O sentido do enredo é manter a turma unida. Em Will & Grace, apesar do tema ousado (novamente a homossexualidade embalada em comédia), nem mesmo o casamento de Grace impede que ela passe mais tempo com Will do que com seu marido.
Cinema e música pop há muito tempo desbancaram teatro e literatura como ícones da cultura pop. Até os anos 70, uma peça provoca barulho, discussão. Atualmente teatro é diversão. A literatura mais popular tem alcance mínimo como provocação. Sucesso são manuais de auto-ajuda ou livros que serão filmados.
Celebridades de agora são artistas de cinema e cantores, especialmente voltados para adolescentes. O sucesso das novas séries de televisão e a enxurrada de seus lançamentos em DVD indica que uma nova/velha forma de expressão artística está fazendo cabeças.
Um sinal: a produção de Queer as folk promoverá festas semelhantes às vistas na série em várias cidades americanas em breve.
E aí temos agora o sonho possível, todos podem ver, participar, perceber-se quase como uma das personagens.
Os DVDs dos dois primeiros anos da série esgotam-se nos Estados Unidos de forma surpreendente para o tema. Talvez todos sintamo-nos queer às vezes.
Sex and the city é muito mais palatável pela família, americana ou brasileira... Afinal há cada vez mais mulheres sozinhas, bem sucedidas financeiramente, independentes e... na eterna busca do homem perfeito, ou nem tanto, bom companheiro já basta! É hilariante o capítulo onde Charlotte se apaixona pelo vibrador e uma delas explica que ela encontrou finalmente o homem ideal!
Na brasileira, Os normais, o intuito da grosseria e escatologia evidentes é aproximar o espectador de sua verdade: todos fazemos cocô e ainda os educados dão descarga!
O riso fácil provocado pelas mais constrangedoras situações: deboche, menos valia, falta de masculinidade ou feminilidade, homossexualidade insinuada ou explícita, servem de catarse ao público pela proximidade ou mais ainda, pela distância com a conduta das personagens.
Ri-se muito das desgraças de Vani e Rui, quase sempre tensos, nervosos, irritados, frustrados, decepcionados, vulneráveis... Quem de nós não for assim atire a primeira pedra, ou mude de canal, mas estará perdendo uma forma genuína de diversão, das mais inteligentes que já surgiu na TV brasileira.