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Entrevista

The Humans: Diretor explica como construiu horror em jantar de Ação de Graças

Autor da peça, Stephen Karam discute desafios de adaptar o próprio material para um filme da A24 em entrevista ao Omelete

12.08.2022, às 13H41.

Levar peças de teatro para o cinema é uma prática tão antiga quanto a sétima arte, mas um dramaturgo ter a oportunidade de dirigir ele mesmo a adaptação da própria obra é um exercício não tão frequente. É inegável que exista uma certa mística em torno do trabalho, do autor que toma para si a tarefa hercúlea de refazer a produção numa mídia que mantém uma relação diferente com o público, e por isso mesmo muitos prefiram os caminhos tradicionais - vender os direitos, supervisionar de longe, assistir outros refazerem seu percurso nas telas.

Stephen Karam nunca chegou a adotar essa segunda opção, mas já se traumatizou o suficiente com a experiência de comprometer sua visão cedendo-a a terceiros. Em 2017, o dramaturgo viu em primeira mão o resultado de um de seus primeiros trabalhos de sucesso, a peça Speech & Debate, se tornar no que descreve hoje como uma “história conhecida de Hollywood”, mesmo tendo assumindo a função de roteirista. “Ainda que tivesse o crédito, a maioria do texto foi reescrita pelo diretor conforme ele preparava a produção”, relembra durante uma conversa com o Omelete.

A experiência passa longe do trauma, mas em algum nível conta como importante o suficiente para formar a perspectiva do escritor com o caminho de suas obras para o audiovisual. Em passos parecidos com o de Florian Zeller com Meu Pai, Karam decidiu por assumir a tarefa de trazer para o cinema a história de The Humans, sua peça mais famosa e que lhe rendeu tanto o Tony quanto uma indicação ao Pulitzer em 2016, mesmo ano que Hamilton explodia a Broadway e se tornava no fenômeno cultural que conhecemos. E isso com interesse desde o início pelo desafio, dado que ele chegou ao ponto de propor a ideia a diferentes estúdios antes destes perceberem o potencial de uma adaptação do material.

É uma versão que ele defende agora nas entrevistas, divulgando o lançamento do filme produzido pela A24 em diversos países - incluindo o Brasil, onde estreia nesta sexta-feira (12) pela MUBI. “A maior atração foi que, quando eu via como um filme, o material soava muito diferente da peça” explica Karam na conversa por Zoom, imerso nos livros e a maquete de casa que o cercam no frame da chamada. “A forma como se traduziria o texto para o filme significa desde o começo que você não pode mais assumir essa visão de casa de bonecas, onde você pode assistir aos seis atores de uma vez por duas horas”, comenta em seguida.

Estreante na direção com o projeto, o dramaturgo ainda diz que essa reflexão o fez pensar sobre “Como isso podia levar a contar a história de forma mais efetiva”, até porque no cinema se é possível direcionar a atenção do público ao que se deseja mostrar: “O que você pode contar para a audiência só de ter um zoom no rosto de Jayne Houdyshell enquanto todos os outros atores conversam, mas depois de ter visto todos a contornando para ir e vir da cozinha… o poder disso me animou muito e meio que continua por todo o filme”.

A regra do jogo

A questão do controle vive retornando nas declarações de Karam sobre o filme, o que faz sentido dado não apenas o grau de autonomia que teve com o projeto - graças a um orçamento bem reduzido, como gosta de ressaltar - mas também pelos temas repassados na história. 

Situado durante um jantar de Ação de Graças em um apartamento apertado de Nova York, The Humans observa a típica reunião de uma família até o momento em que esta começa a se desmantelar em diversas crises perante os tormentos que cercam cada membro do grupo. Da filha que acabou de passar por um término e uma demissão às aparentes manifestações de depressão dos pais, passando pela avó senil, o filme passeia pelas conversas amenas do grupo e observa as pequenas rachaduras que gradualmente se revelam. 

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Tanto na peça quanto no filme, a memória do 11 de setembro é perfurante e não só porque o apartamento de dois andares fica próximo do marco zero do atentado terrorista. Aos poucos, o espectador começa a ligar os pontos para entender o passado daquela família, e uma revelação envolvendo os pais pesa a cada segundo da projeção.

A questão é que o tal retrato fraturado inscrito na proposta surge de fato no descontrole progressivo das situações e nas pequenas coisas que se revelam nas beiradas, e aí entra muito do trabalho do diretor para reorganizar esse processo do espaço do palco para o set. E para além do elenco repleto de nomes conhecidos - como Richard Jenkins, Amy Schumer e Steven Yeun - a diferença crucial é entender o quanto precisa ser dito. Nesse ponto Karam não hesitou: ele confirma na entrevista que o roteiro da adaptação cortou cerca de um terço do texto verbalizado na peça, entre monólogos e diálogos da família.

“Muito da história é sobre as formas como a família lida com suas crises de ansiedade, e muitos desses momentos se mostram comportamentais” explica o dramaturgo tornado em cineasta, lembrando ainda de como achava que os silêncios da narrativa comunicam mais o que precisava ser dito em relação às conversas presentes no texto da versão da Broadway. 

“Eu achei muito emocionante ter momentos como quando Steven Yeun tem que lidar com um colchão no corredor, pois ele diziam muito sobre sua personalidade e mesmo seu estado de espírito naquele momento”, relembra; “Então era menos um monólogo e uma conversa que podíamos ter a cada cena, pois soava que o mesmo era obtido de maneira melhor por ações e não necessariamente palavras”. Ele ainda relembra de uma cena em que Schumer se encontra no banheiro, vendo mensagens no celular preocupada: “Só de ver aquelas imagens em close já explicava muito de sua pessoa, mais que um diálogo de palco”.

Karam obteve muito controle quando decidiu por recriar o espaço do pequeno apartamento em set, ao invés de buscar uma moradia real que viabilizasse reproduzir o ambiente - ainda que a produção tenha encontrado um corredor vermelho real na vizinhança do artista para filmar a entrada. O grande desafio foi evitar que o espectador percebesse a construção: “Eu não queria ninguém focado ou pensando sobre como isso obviamente era construído até o desfecho” brinca na conversa.

Há também um pouco de autenticidade nessa decisão, claro. “A gente baseou o espaço na planta de um apartamento real e, ao fechar as paredes, os tetos baixos forçaram a fotografia a ser muito inteligente em como estabelecer a iluminação” explica o dramaturgo, que nessa hora não economiza em elogios ao diretor de design de produção, David Gropman, e de fotografia, Lol Crawley, por ajudarem a fabricarem uma narrativa que aproveita muito da arquitetura do apartamento para ilustrar as turbulências internas dos personagens - e a claustrofobia é crucial aos méritos do longa.

“O espaço é tão pequeno que há sempre alguém no fundo de cena, então não há lugar para se esconder” verbaliza Karam na entrevista; “Eu acho que o produto final soa muito especial porque não há um frame que você não veja June Squibb no sofá, simplesmente porque nós não conseguimos encontrar um ângulo onde ela não aparecesse junto dos outros dois personagens”. O mérito ao elenco estrelado acompanha o tour de force: “O sentimento é de que suas atuações estavam casadas com aquele set, ainda mais porque não era um filme tradicional onde tudo se resolvia na pós-produção e eles podiam aparecer individualmente para fazer as cenas. Eles estavam tão entrosados e afins de fazer aquilo que no fim você sente essa força do coletivo” finaliza.

The Humans já está disponível na plataforma da MUBI.