O ESPECIAL TELA QUENTE é uma reportagem do Omelete sobre a história da representação do sexo no cinema, os debates atuais em torno dela, e o impacto na indústria do audiovisual. Composto de seis matérias jornalísticas apoiadas em pesquisa e entrevistas com diversos especialistas - psicólogos, críticos, cineastas, coordenadores de intimidade e mais -, o especial será postado em capítulos entre os dias 2 e 6 de setembro (ou 6/9, quando é comemorado o Dia do Sexo).
Em 1896, quase 130 anos atrás, o público estadunidense ficou chocado com The Kiss, curta-metragem produzido por Thomas Edison (ele mesmo, o inventor da lâmpada - e de uma das primeiras câmeras de filmagem da história) em que os atores May Irwin e John Rice recriavam o beijinho tímido que encenavam na peça The Widow Jones, um hit teatral da época. Visto hoje, o ato dos dois atores diante da câmera mal se qualifica como um beijo - eles mais colam bochechas do que qualquer outra coisa -, mas The Kiss causou um verdadeiro escândalo no final do século XIX.
“O espetáculo de pastoreamento prolongado dos atores nos lábios um do outro já era bestial o bastante quando encenado ao vivo, no palco. No entanto, magnificado na tela em proporções gigantescas e repetido três vezes, se torna absolutamente nojento”, definiu um crítico da época. E sim, ele estava falando disso aí mesmo que você pode conferir abaixo.
Acontece que, de The Kiss adiante, as coisas só foram piorando - ou melhorando, dependendo a quem você pergunte. Um excelente recurso para entender a progressão dos retratos de sexualidade no cinema é este catálogo exaustivo do FilmSite, que reúne muitas das produções mais relevantes a abordarem o assunto, de uma forma ou de outra, na história de Hollywood e de alguns outros cinemas ao redor do mundo. Ali se percebe, por exemplo, que pornografia não é invenção da internet, e nem dos produtores de VHS dos anos 1970 - desde que a câmera foi inventada, filmar o ato sexual se tornou um de seus usos mais frequentes.
A própria Hollywood pré-Código (período antes de 1934, quando houve a ratificação do Código Hays, documento de censura que governou as produções dos grandes estúdios dos EUA por mais de três décadas) era sem dúvida mais liberal com o sexo do que se imagina, especialmente quando se tratava de nudez feminina e piadinhas de duplo sentido. Mas ainda foi preciso o sucesso de um filme da então Tchecoslováquia (atual República Tcheca) para inaugurar a era do cinema erótico mainstream: Êxtase, de 1933, estrelado pela incandescente Hedy Lamarr.
Dirigido por Gustav Machatý, o longa acompanha uma jovem presa em um casamento miserável, que procura um divórcio e, aos poucos, vai se libertando do jugo de seu marido abusivo. Em uma cena, a protagonista se despe para tomar banho em um lago, mas se vê em apuros quando o seu cavalo foge levando todas as suas roupas com ele. A jovem é salva por um desconhecido, que consegue acalmar o cavalo e respeitosamente entrega as roupas para ela, iniciando uma conversa que os leva a um encontro noturno. É nesse início de caso extraconjugal que Êxtase inclui aquela que é considerada a primeira cena de sexo do cinema comercial.
Filmada em P&B radiante, a sequência surpreendentemente retém algo de sensual se vista hoje, mais de 90 anos depois. Os beijos do casal são muito mais apaixonados do que aqueles capturados por Thomas Edison no seu curta, e o diretor Machatý filma o ato sexual com o recato apropriado para a época - mas sem abrir mão das expressões de prazer se sua atriz principal. Anos depois de Êxtase, Lamarr viraria estrela de Hollywood e, durante a Segunda Guerra Mundial, inventora - ela desenvolveu um sistema de radiolocalização para torpedos que formaria a base da tecnologia que conhecemos hoje como wi-fi.
A época do lançamento de Êxtase, é claro, também foi acompanhada de escândalo. De acordo com o The Independent, o filme se tornou o primeiro da história a ter sua entrada nos EUA barrada pelas autoridades portuárias do país, e também o primeiro a realizar cortes estratégicos para escapar dessa censura. Não que isso tenha machucado os prospectos comerciais do longa, que foi um sucesso tremendo em todos os lugares onde permitiram que ele passasse. A própria Lamarr brincou, com algum grau de amargura, que passou “décadas sendo reconhecida na Europa e nos EUA como a garota de Êxtase, o que fazia os homens olharam para ela como se fosse um bicho no zoológico”.
Elizabeth Berkeley em cena de Showgirls (Reprodução)
Para o bem ou para o mal, o frisson em torno da obra de Machatý se tornou o aviso definitivo para os produtores de filmes: sexo vende - no cinema, também. Passado o período do Código Hays (revogado oficialmente em 1968), floresceu nos EUA uma indústria de “filmes de sexo” que borravam a linha entre a pornografia e o mainstream: o recentemente relançado Calígula (1979) foi um deles, assim como Garganta Profunda (1972) e as produções assinadas por Andy Warhol - tendência que, por sua vez, deu à luz o thriller erótico, que teve seu momento de glória nos anos 80 e 90. Mas, ecoando as palavras da nova geração: Pra quê tanto sexo?
“É curioso falar de utilidade porque, teoricamente, não vejo utilidade no próprio cinema. Tal como o sexo, é algo que se faz para dar prazer. Por que outro motivo eu vou escolher me sentar por duas horas para assistir uma história de ficção?”, reflete a psicóloga Carolina Freitas de Mendonça (CRP 19/004533). “Se for pensar no que é gratuito ou não, todas as cenas são gratuitas na ficção. Por outro lado, dentro da lógica de um filme, a cena de sexo pode trazer o desenvolvimento de um personagem - afinal, a forma como a gente se comporta no sexo também faz parte de quem a gente é. A sexualidade tem a ver com a forma como existimos no mundo, seja você uma pessoa que reprime muito essa sexualidade ou não. Ela é central, porque o nosso corpo é central na nossa existência”.
A título de exemplo, Freitas cita Showgirls (1995), filme do cineasta holandês Paul Verhoeven, um dos mestres do thriller erótico - e da sátira. Repudiado pela crítica e rejeitado pelo público na época de seu lançamento, o longa sobre uma jovem aspirante a dançarina exótica em Las Vegas (EUA) tem passado por reavaliações críticas como paródia dos exageros da sociedade estadunidense (e, porque não, das narrativas arquetípicas do seu cinema). Isso inclui a infame cena de sexo na piscina, protagonizada por Elizabeth Berkeley e Kyle MacLachlan.
“Ela beira o ridículo com a gritaria, a água, a performance”, admite a psicóloga. “Mas faz todo sentido naquele filme, até por não ser algo muito erótico - dentro do contexto da história dessa mulher que vai trabalhar no mundo do striptease, é só uma extensão da performance dela, e da relação do filme com o absurdo e o bizarro. Eu acho que as cenas de sexo sempre revelam algo da humanidade, estão sempre falando de nós. E, mesmo se causar desconforto na hora de assistir, vale questionar de onde está vindo aquele desconforto. Cada cena tem sua intenção, e a forma como ela vai chegar ao público também vai depender de quem é o público”.
Essa é uma rua de duas vias, no entanto. Se o impacto da cena de sexo depende de quem está recebendo, ele sem dúvida também depende de quem está fazendo…