Um batalhão de tanques de guerra e uma multidão de soldados muito bem equipados, com encouraçadas protetoras e metralhadoras em punho, se postam diante de uma cerca. Do outro lado do gradeado, um contingente francamente menor de habitantes locais, armados apenas com paus e pedras - no máximo, algum instrumento agrícola mais afiado - preparam-se para defender seu vilarejo. O confronto poderia estar em qualquer noticiário dos últimos meses, mas está no terceiro ato de Superman, filme da DC dirigido e escrito por James Gunn. No longa, o cenário é a fronteira entre os países ficcionais de Borávia e Jarhanpur, mas Israel e Palestina imediatamente virão à mente.
O "Martelo de Boravia", antagonista de Superman (Reprodução)
Até porque o paralelo não é sutil. Embora o roteiro de Superman esteja em desenvolvimento desde pelo menos 2022, fica claro durante a metragem do longa que eventos bem mais recentes moldaram - ou, ao menos, tornaram retrospectivamente prescientes - o pano de fundo da trama. Mas pudera: como Gunn bem demonstra aqui, não é tão difícil extrapolar as realidades contemporâneas em uma história clássica de heróis e vilões de quadrinhos. O mundo está cada vez mais óbvio, e cada vez mais desavergonhado em suas oposições.
Daí que o presidente da Borávia, Vasil Glarkos (Zlatko Burić), pode surgir em Superman como uma caricatura amalgamada dos líderes autoritários vaidosos e famintos de notoriedade que dominaram certas democracias nos últimos anos. Meio pateta, meio perigoso - em parte por sua patetice, que esconde uma falta de escrúpulos ideológicos na vontade de afagar o próprio ego -, ele é Donald Trump e Vladimir Putin, Jair Bolsonaro e Javier Milei, Boris Johnson e Narendra Modi, essa permutabilidade servindo até como parte da piada. Glarkos é um arquétipo de pantomima, muito mais do que um personagem, e de certa forma o Lex Luthor de Nicholas Hoult não fica tão atrás.
Nicholas Hoult como Lex Luthor (Reprodução)
Se todo Trump tem o seu Elon Musk (desavenças incluídas), Luthor faz esse papel para o líder da Borávia. Não só o bilionário banca os sonhos conquistadores de Glarkos, como se infiltra também no governo estadunidense para puxar as políticas institucionais na direção de seus interesses. Soa familiar? Em troca, como descobrimos mais a frente, ele quer metade de Jarhanpur uma vez que o país for inteiramente conquistado pelo rival, com todas as riquezas naturais incluídas - e, é claro, a consolidação de sua posição como influência decisiva no destino de países e sociedades inteiras. Gunn faz ginástica retórica na hora de reavaliar a motivação de seu vilão diante do desafio do Superman, mas no fundo a coisa é muito simples: ele quer ser o maioral, e acha que merece ser o maioral.
Juntar 2+2, como eu disse lá em cima, não foi tão difícil - não era em 2022, e não é em 2025. Mas Superman tampouco sofre de uma falta de especificidade que o tornaria inofensivo: quando Glarkos finalmente ordena a invasão do país vizinho, por exemplo, o faz declarando que seus soldados devem “inundar as ruas de Jarhanpur com o sangue de seus habitantes”. É referência clara a admoestações similares vindas de oficiais do governo israelense e até de membros do Congresso estadunidense sobre o conflito brutal que tem destruído o território palestino desde o final do ano passado. No posicionamento de seus personagens, portanto, Gunn deixa claro como vê uma situação muito real.
Essa clareza moral serve bem a uma história do Azulão, é claro. Em seu melhor, o Superman é o herói de situações com pouco território cinza, o corretor invencível de uma injustiça tão flagrante quanto aparentemente insuperável. É pura fantasia, escape de uma realidade cheia de desequilíbrios de poder incorrigíveis, e por isso mesmo o palco perfeito para um contador de histórias demonstrar posições políticas fortes - não dá para ser mais antagonista, afinal, do que indo contra o super-herói original. Ter a coragem de apontar dedos para vilões de verdade foi um dos muitos acertos de Gunn neste início do DCU.