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Entrevista

Que Horas Ela Volta? | Anna Muylaert fala sobre o novo papel da mulher dentro e fora das telas

Filme premiado em Sundance e Berlim estreia esta semana no Brasil

RF
24.08.2015, às 18H23.
Atualizada em 24.08.2015, ÀS 18H42

Premiado nos festivais de Sundance e Berlim, acolhido na França, na Itália e outros países europeus como um sucesso de bilheteria e encarado como um potencial fenômeno de cinema autoral popular, o drama Que Horas Ela Volta? enfim entra em circuito em território nacional  nesta quinta-feira, coroando a trajetória de sua diretora, a paulistana de 51 anos Anna Muylaert. Sinônimo vivo de “bom roteiro” no mercado audiovisual, a cineasta estreou na direção de longas-metragens em 2002 com Durval Discos, que, ao ser laureado no exterior, despertou o interesse de olheiros da indústria americana. O filme seguinte de Muylaert, lançado em 2009 com o título de É Proibido Fumar, arrebatou 31 prêmios. Agora, em seu novo longa, a realizadora faz um balanço sobre relações entre patrões e empregados e entre mães, pais e filhos numa estrutura social chamada classe média. Regina Case é um dos focos de visibilidade da produção, no papel da empregada doméstica Val, uma pernambucana que vai reencontrar, depois de uma década, a filha deixada em Recife: Jéssica (Camila Márdila). Mas a chegada de Jéssica vai desnortear os rumos dos empregadores de Val, o casal Bárbara (Karine Teles) e Carlos (vivido pelo quadrinista e escritor Lourenço Mutarelli). A fotografia é da uruguaia Bárbara Alvarez, que trabalhou no cult O Gorila (2012) e no premiado Boa Sorte (2014). Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao OmeleteAnna Muylaert fala sobre a realidade retratada a partira das angústias de Val e analisa a condição feminina nas telas.

Qual é a responsabilidade de lançar um longa-metragem apelidado de “o melhor filme brasileiro do ano”?
ANNA MUYLAERT - Eu não tenho essa responsabilidade. Fico muito feliz que digam isso, mas o meu esforço está focado no lançamento em si, em produzir peças legais, fazer sessão para professores, sessão pra domésticas, conseguir chegar no público que eu gostaria que visse esse filme, um público que não está tão acostumado a ir ao cinema.

No exterior, seu filme é um sucesso de público. De que maneira esse êxito comercial acena para um novo entendimento (e, mais, para um novo interesse) sobre o Brasil aos olhos estrangeiros? Qual e como é o Brasil do seu filme?
MUYLAERT - Na Europa, o filme gera sim um interesse sobre a realidade brasileira contemporânea. Eles sempre perguntam se o tipo de relação patrão e empregado mostrado no filme realmente existe. Eles têm dificuldade de acreditar que as coisas ainda estejam assim.  Isso num primeiro momento. Mas, logo, os debates ou entrevistas vão para um espectro maior das questões abertas pelo filme: eles começam a discutir relações de poder, colonização, imigração, autoestima, afeto, educação etc. Sinto que o êxito comercial do filme reside nessa amplitude de debates que promove. O Brasil mostrado no filme é um Brasil muito violento e, ao mesmo tempo, é muito gentil.

A partir do movimento chamado de Cinema Novo (1962-1969), sobretudo com o documentário A Opinião Pública (1965), de Arnaldo Jabor, a classe média passou a ser vilanizada em nosso meio audiovisual. Seu filme parece fazer as pazes com esse segmento social. Qual é a poesia que você encontra na classe média brasileira?
MUYLAERT –
 Engraçado... Eu não entendo assim. Eu não vejo exatamente que o filme encontra poesia na classe média. Sinto que se trata de uma crítica que, apesar de ácida, é também gentil porque acredito que esses personagens não são culpados e talvez nem sejam conscientes do que estão fazendo dia após dia.  Ao tornar visível esse conjunto de regras invisíveis que norteiam as relações sociais - regras que, como diz a Val, “a gente já nasce sabendo” –, o filme esta querendo debater e alertar para a imaturidade e o anacronismo da nossa cultura com sabor escravagista.  Sinto que poesia, ou pelo menos o lirismo, acontece mais a partir do trajeto da Val, que sai de um papel estreito dado a ela pela sociedade, e consegue chegar em outro lugar , mais amplo, onde o que esta valendo é sua individualidade, seu coração, sua família.  Ela se torna uma cidadã, um indivíduo com direito a cidadania.

Em Sundance, suas atrizes (Regina Casé e Camila Márdila) foram premiadas, mas, no Festival de Berlim, os prêmios, de júri popular e da C.I.C.A.E. (Confédération Internationale des Cinémas d’Art et d’Essai), foram para o conjunto de atributos que, arquitetados por você, levaram seu elenco e seu roteiro a picos de excelência e de transcendência. De que maneira Que Horas Ela Volta? faz você rever e repensar sua trajetória na direção desde o início de sua carreira até a consagração atual?
MUYLAERT -
Eu comecei este filme há 20 anos, depois de ter me tornado mãe.  Trabalhei por dois anos neste roteiro, mas, quando aquela versão ficou pronta, eu achei que ainda não estava matura como diretora para realizá-lo. Resolvi fazer coisas mais simples antes de pegar esse tema.  Assim nasceu Durval Discos – de uma demanda de simplicidade. Depois vieram várias outras coisas e eu fui amadurecendo a cada trabalho. Fui desenvolvendo e aperfeiçoando métodos de escrita e formas de organizar meu olhar.  Nos últimos seis anos, algo grande aconteceu para mim, que foi sair da película e começar a trabalhar em digital.  Embora ainda sinta falta da estabilidade da qualidade das cópias 35mm, o digital me deu uma incrível  liberdade na hora de filmar, que permitiu que eu esquentasse muito minha relação com os atores no set. E não só com os atores, mas com o acaso também. Um exemplo disso, em Que Horas Ela Volta?, é a forma como consegui absorver as chuvas nas cenas.  Comecei a trabalhar muito mais no improviso e instigar a vida nas cenas, muitas vezes mudando tudo de última hora pra deixar todos alertas.  Nesse período, também aprendi muito sobre roteiro. E esse conhecimento me dá segurança para poder tentar ir além na hora das filmagens.

A equipe te ajudou nisso?
MUYLAERT -
 Neste filme, eu tive a equipe dos sonhos, todos trabalhando no  mesmo sentido, no sentido do cru, a começar pela fotógrafa Barbara Alvarez, cujo olhar simples e direto sempre me encantou. Ela fez o filme quase sem usar luz artificial. Ela esculpe a luz quase como uma pintora, somente abrindo e fechando cortinas. A direção de arte, de Thales Junqueira e Marcos Pedroso, também é crua: mantivemos a sujeira nas paredes, os restos de lixo pelo chão. É uma direção de arte que não está atrás de beleza, e sim de vida. O figurino da Val, feito pela Claudia Kopke, também vem de uma observação muito acurada da realidade. E, por fim, a montadora Karen Harley soube junto comigo dar ritmo ao filme sem perder os tempos internos dilatados das cenas.  Quando todos trabalham no mesmo sentido,  o trabalho de todos se potencializa. Então, eu acho que tudo na vida é processo.  Esta consagração que você diz, eu a vejo e me alegra muitíssimo. Mas, ao mesmo tempo, ela de nada servirá na hora em que eu tiver que enfrentar o papel em branco novamente.

Existe uma afirmação dos diferentes papéis familiares na saga de Val e seus patrões. Mas existe acima de tudo uma reafirmação da condição feminina, seja de que classe esses mulheres sejam. O que seu filme busca de mais singular na atual realidade da mulher brasileira? O que há de universal nesse seu olhar feminino?
MUYLAERT - Sim, acho que, passados 40 anos da primeira grande onda feminista, as mulheres, nós estamos muito fortes. E não é só no Brasil... como ando viajando muito com filme, percebo isso no mundo todo.  Alem de cuidar dos filhos, da casa e do corpo – papéis tradicionais da mulher –, também trabalhamos... fazemos filmes... fazemos diferença.  Nesses últimos 40 anos, a mulher dobrou sua capacidade de trabalho. Ao mesmo tempo, continuamos vivendo na mesma sociedade machista de sempre. E uma sociedade onde o homem ainda se agarra ao antigo papel masculino de apenas fazer o trabalho profissional que pode lhe dar dinheiro e poder e segue a desprezar o trabalho feminino - que não dá dinheiro, fama ou status. Por exemplo, no filme, eu estou falando do trabalho imenso e sagrado que é não apenas educar, mas também de cuidar de uma criança. Esta recusa masculina a ampliar seu escopo de atuação está gerando um desequilíbrio. Nós, mulheres, estamos carregando dois pesos, e os homens continuam apenas carregando um peso. E ainda querem mandar na gente. O filme tenta ver as coisas sob uma perspectiva feminina.  Não apenas o filme valoriza a educação, como também afirma um novo tipo de mulher.   

Qual seria o eixo comum de suas dramédias, Durval Discos, Proibido Fumar Que Horas Ela Volta? em relação ao processo de escrita de roteiro?  
MUYLAERT - 
Desculpe, mas não gosto deste termo “dramédia”. Acho horrível e não o entendo.  Acho que faço dramas. São histórias sérias que querem revelar alguma coisa. Se são engraçadas, isso está na minha direção, que busca o cômico no drama e até no trágico. Quanto ao processo: Durval Discos foi mais intuitivo. A partir do É Proibido Fumar, comecei a tomar cada vez mais consciência da importância do ritmo, da métrica numa estrutura narrativa.  No Que horas? isso chega ao máximo porque o filme é uma espécie de teorema onde tudo acontece quase de forma matemática.  Inclusive os enquadramentos, as repetições, os símbolos, as metáforas.

O que esperar do novo filme, com Matheus Nachtergaele, que você tem pronto para estrear no ano que vem, chamado Mãe Só Há Uma?
MUYLAERT - Ainda estou em processo e ainda não sei como definir o que fiz. Mas é um filme bem diferente de todos outros. Primeiro porque é um B.O. (baixo orçamento) feito com pouca grana e gente jovem. Também porque é feito todo com câmera na mão. E é a maravilhosa câmera de Barbara Alvarez, de novo comigo.  Além disso, é meu filme com mais personagens, locações e movimentos. Do ponto de vista da historia, trata-se de um filme também sobre identidade e individuação, mas, aqui, trato de questões mais provocativas, como a transgeneridade.