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Intromissões

Capitão Nascimento, o homem do ano, e mais A Pedra do Reino, sexo, Heroes e Piaf

A&
17.12.2007, às 21H00.
Atualizada em 11.11.2016, ÀS 09H06

"O senhor é um fanfarrão, xerife."
Capitão Nascimento

Intromissões

Tropa de Elite

[O homem do ano] 

Capitão Nascimento. Um herói (ou anti-herói) fascinante para todos. Tem a certeza como a dos santos visionários; seduz pela simplicidade. O mundo do capitão Nascimento: potência desmedida que vai da humilhação à tortura, do tapa na cara à sufocação sangrenta... e mesmo à morte. As posições são absolutas. O bem e o mal são claros, assim como os honestos e corruptos: os convencionais, a PM e os caveiras do BOPE. Tropa de Elite traz a consolidação de um paranóico para o trono do Brasil de agora. Quase tudo foi falado sobre este acontecimento dirigido por José Padilha, talvez o mais assistido filme brasileiro de todos os tempos, considerando, é claro, a impossível medição dos espectadores piratas. A transformação da ansiedade de Nascimento em resolução paranóica se dá exatamente com a passagem do policial do bem, Matias, em um truculento vingador. O filme não é fascista, como foi alardeado. Filme fascista típico é aquele que cultua a personalidade salvadora lutando por um ideal de nação: Gladiador. Na cena final de Tropa de Elite, a cara explodida do bandido Baiano é claramente confundida com a do espectador. Não há catarse como nos filmes fascistas, em que a platéia acolhe o herói como seu protetor. O homem do ano, pelo olhar da psiquiatria, é um delirante. O delírio pode ser entendido como um pensamento em via única. Não há espaço para dúvidas, somente para certezas. Não há modificações com as experiências, apenas ratificações. Como típico paranóico, os atos de Capitão Nascimento variam entre a arrogância e a crueldade. Como narrador, diz que quer sair do BOPE, pois não se identifica mais com o tipo necessário para pertencer à Tropa de Elite, mas o Capitão Nascimento personagem, apesar do evidente mal-estar, quer apenas ser clonado. Este é o fio condutor da brilhante narrativa: Capitão está mal. Capitão quer sair. Capitão treina candidatos a herdeiro. Um herdeiro é escolhido. Fim.

[As frases-evento do ano]

A primeira reação ao filme é de um espanto e de um reconhecimento: sabemos pela mídia o que acontece nas favelas cariocas. Mas será que sabemos mesmo? O longa nos ensina algo de novo? Sim: a fórmula de tornar popular algo feito bem longe do padrão-Globo-de-qualidade, mas com um roteiro perfeito e frases memoráveis. Repetidas pelos adolescentes, elas fazem parte do respiro cômico de Tropa de Elite, especialmente a narração irônica do Capitão (impossível para o personagem da trama, que é de um intelecto bem mediano), a seqüência do treinamento ("pede pra sair"). Quem já teve a curiosidade de buscar no Google deve ter ficado impressionado com os resultados: há mais de 1,17 milhão de entradas com Capitão Nascimento! No Orkut são 426 comunidades com mais de 6 mil participantes! Além das comunidades com o nome do capitão, ainda há grupos inteiros dedicados às já célebres frases: "23, o senhor está sem bandoleira", "Bota na conta do Papa", "Essa pica agora é do aspira", "Traz o saco", "Eu me pergunto quantas crianças precisam morrer para que um playboy possa enrolar um baseado". Podemos protestar, discutir, mas não há dúvidas que ele é bem popular!

[O rei de pedra]

A Pedra do Reino foi ignorada pelo público e malhada pela crítica. Nada fácil de assistir... Luiz Fernando Carvalho adaptou a peça de Ariano Suassuna e optou por tornar barroca uma história aparentemente simples. A montagem de Antunes Filho dura noventa minutos no palco (Teatro Sesc Consolação, em São Paulo). A minissérie de Carvalho, exibida em cinco episódios pela Globo e agora lançada em DVD, tem quase cinco horas de duração. E dá-lhe metáfora! O personagem principal, Pedro Diniz Quaderna, se vê corroído por uma dúvida entre um suposto passado monarquista e uma educação de "esquerda", comunista e anti-religiosa. Diferentemente do seríssimo Capitão Nascimento (mas não do narrador homônimo e gozador), Diniz se deixa levar pela dúvida até o limite da loucura, enquanto aguarda o inquérito, acusado pela morte de seu padrinho, o hipotético herdeiro do reinado. Capitão Nascimento precisa se resolver retomando a virilidade. Diniz se entrega para o distanciamento pela ironia e assume, cheio de tiques, o papel de narrador desta fábula que tem uma atmosfera quixotesca, embora muito, mas muito próxima mesmo da realidade brasileira. Quanto mais somos envolvidos pela arte mais fácil fica perceber que uma obra não precisa ser necessariamente agradável para nos provocar. Às vezes nos surpreendemos falando mal de um filme para todo mundo, até percebermos que ele nos trouxe modificações. É o caso de A Pedra do Reino por um olhar mais cuidadoso. Em seu último livro (O Fio e os Rastros, Companhia das Letras), o historiador Carlo Ginsburg afirma que o ponto de vista da história é especialmente baseado em produtos culturais da época. A Pedra do Reino se passa na década de 1930 e está repleta de citações políticas daquele momento. Tropa de Elite faz a história do nosso tempo: um Brasil entre melhores índices econômicos, um governo messiânico que diz saber o que é melhor para o povo, mas perdido numa realidade de violência que pode deteriorar qualquer conquista da modernidade.

[A elite do cinema]

Quem vai ao cinema para ver sexo? Dona Flor e seus Dois Maridos há mais de trinta anos mantém o recorde de público de forma proporcional. De Hollywood, o último barulho sobre sexo já tem quase vinte anos: Instinto Selvagem. Mais do que libido, o filme de Paul Verhoeven conseguiu o desenho elementar de uma trama em que sexo e violência não mostram diferenças. Mas agora a hora é definitivamente da brutalidade, seja no cinema norte-americano para adolescentes, seja no brasileiro cujos maiores sucessos dos últimos anos tratam da violência: Cidade de Deus, Carandiru e o filme-evento Tropa de Elite. Sexo e violência fazem o eixo da história do cinema em que desejo e destruição são indistinguíveis. Camille Paglia esteve recentemente no Brasil e, atirando como Capitão Nascimento, contra tudo e todos, disparou que o último grande papel feminino do cinema foi justamente o de Sharon Stone em Instinto Selvagem: a mulher fatal mostra o poder que exerce via sexualidade. Desde então a mulher dos filmes foi destituída de sua feminilidade. Bem, pelo menos agora o sexo passou a fazer parte dos seriados norte-americanos...

[Incenso sem senso]

Apesar de ser uma série norte-americana, nada há de sexo, muito menos de violência. A primeira temporada de Heroes saiu em DVD. É uma catástrofe anunciada e confessa. A essência da trama é a premonição da destruição de Nova York e a mobilização de superpoderosos que mal sabem de si para evitá-la. Com uma tempestade digna do pastiche a que se presta, uma pop-art premonitória "criada" sob efeito de drogas, uma Índia (sempre escura, suja e aterrorizante!) de computador e efeitos especiais só um pouquinho melhores que Jeannie é um Gênio ou A Feiticeira - especialmente as cenas de desaparecimento ou de vôo - fica difícil embarcar nessa mistura de aventura da contracultura com um messianismo típico de Stephen King. Tudo se encaminha para a maniqueísta luta entre o bem e o mal. O vilão é tão mal construído e é tamanha a quantidade de personagens que mudam de perfil psicológico a cada episódio que dá vontade de, assim como faz o Capitão Nascimento, pedir para trazerem o saco para seu criador Tim Kring. Surpreende o sucesso. A versão em HD DVD (importada) a que assistimos, com todos os extras e opcionais revela o vazio de propósito e a arrogância de jovens atores despreparados (exceção devida a Masi Oka, o simpático e afetado Hiro Nakamura). A imagem em alta definição dos episódios é excepcional, implicando ainda mais os propositalmente efeitos ruins, além de uma observação curiosa: os homens estão extremamente maquiados, beirando o travestismo. Sobrancelhas pintadas, cílios, lábios... além da pele coberta por quilos de pancake! Mas também o que esperar de um seriado cujo bordão principal é "Save the Cheerleader. Save the World!!!" Argh!

[A elite da barbárie]

"Como, para um homem comum, uma coisa pode ser correta hoje
e um crime amanhã? Os homens precisam ser guiados,
não é culpa deles. São questões complexas,
e não há respostas simples. Quem sabe onde está a Lei?
Todos devem procurá-la, mas isso é difícil,
e é normal curvar-se ao consenso."

Maximilien Que, oficial da SS nazista,
encarregado de organizar o extermínio dos
judeus em As Benevolentes, de Jonathan Littell.

Maximilien é o Capitão Nascimento deste romance de ficção em que quase nada é ficção. Sua filosofia reproduzida nesse parágrafo é o manifesto daquele que, enquanto no poder, pode fazer o que quiser. Simplesmente porque está no poder. A violência é um método em que está em jogo o poder. A barbárie é a destruição pela vontade de destruir de quem está ou quer estar no poder. Entre violência e barbárie há pouca distância em espaço ou tempo. As Benevolentes (Editora Alfaguara) poderia ser um pouco mais curto do que suas 900 páginas, mas se torna obrigatório neste ano em que mentes do mal têm sido analisadas.

[La vie é uma droga]

Se você gosta de Edith Piaf fuja de Piaf - Um hino ao amor. Iconoclasta como só os franceses são, o filme do diretor e roteirista Olivier Dahan acaba com a cantora/atriz/compositora, uma Madonna da sua época, que por vinte anos encantou o público mundial, morreu aos 48, destruída pelo vício em morfina, mas ainda é reverenciada com coletâneas e filmes como este. Aqui, Piaf é mostrada como chata antipática e morrendo desde a infância. O filme já começa com ela doente, ainda menina, abandonada e quase cega por uma infecção!

Há ótimas passagens como o anúncio da morte de seu grande amor, o boxeador Marcel Cerdan, num plano-seqüência em que o ele está presente apenas para a cantora, até ela receber a no tícia de sua morte. Mito destruído é mito entronizado.

Um documentário excelente produzido e estrelado pela especialista em Piaf, Raquel Bitton (Piaf - her story, her songs de 2003, disponível em DVD nos EUA) resgata o que importa ao público: uma mente criadora, uma personalidade aglutinadora e canções eternas.

Marion Cotillard, como a Piaf do título, merece o Oscar. É fantástica sua força para destruir - e o faz - o mito que adoramos amar. Qual o interesse de assistir a decomposição de uma dócil frágil criatura?

[Uma amizade solar]

"Sabe o que às vezes eu tenho vontade de fazer com o sol?
Tenho vontade de comer".
Aldeotas

A peça escrita por Gero Camilo (quem não se lembra de seu personagem em Carandiru, par romântico de Rodrigo Santoro?) é a história da amizade entre Levi e Elias, que começa e termina na pequena cidade de Coti das Fuças, perdida em qualquer interior do Brasil. Encerrada a temporada deste ano, a peça volta em janeiro no mesmo TUCA (sala Arena, perfeita para a montagem). Um tapete branco encardido, iluminação primorosa, uma bela preparação corporal e nenhuma música fazem o clima. Com surrada calça branca e camiseta regata, o próprio autor e Caco Ciocler hipnotizam a platéia que avista toda a cidade descrita pelos atores: o mirante no alto da serra, o baile de formatura, a escola, as primeiras experiências sexuais escondidas. Cristiane Paoli Quito faz o que raramente assistimos em teatro: direção de ator. Sublime. Imperdível.

"Com minhas lembranças
Acendi o fogo
Minhas mágoas, meus prazeres
Não preciso mais deles!"

Cantava Edith Piaf