Recebido com aplausos e discussões calorosas no Festival de Berlim, em fevereiro, o mais polêmico documentário brasileiro de 2016, Curumim, de Marcos Prado, enfim chega às telas. Nesta quinta (3) entra em cartaz o longa-metragem sobre as horas finais do surfista e chef de cozinha carioca Marco Archer, executado na Indonésia em 2015 sob a acusação de tráfico de drogas. Diretor do Estamira (2004) e produtor da franquia Tropa de Elite (2007-2010), Prado cedeu um trecho inédito do filme para o Omelete e nos contou aqui sobre as estratégias narrativas adotadas para o projeto, pelo qual recebeu uma menção honrosa no Festival do Rio.
Omelete: De que maneira a sua visão sobre o sistema carcerário e sobre pena de morte se modificaram com Curumim?
Marcos Prado: Muitos presídios da Indonésia são controlados por milicianos extremamente corruptos. Neles, você tem acesso a celulares, suborna os guardas para dar uma volta na praia e, por incrível que pareça, você consegue comprar drogas. E essas drogas são vendidas pelos guardas, ironia do destino! Mas falar sobre a corrupção e a podridão do sistema carcerário da Indonésia, tendo um sistema aqui no Brasil ainda pior, margeia a hipocrisia e a loucura.
Omelete: O que as palavras “prisão” e “justiça” simbolizam para o filme Curumim?
Prado: Este documentário aborda muitas questões: “justiça”, ”tortura”, ”corrupção”, “arrependimento” e “pena de morte”, que podem ser debatidas com profundidade. Só para citar alguns fatos... Curumim e Rodrigo Goularte (o outro brasileiro, condenado à pena de morte por tráfico de drogas) passaram 12 anos num presídio de segurança máxima, no corredor da morte, sem saber quando seriam executados. Rodrigo não aguentou a pressão psicológica e acabou sendo diagnosticado com esquizofrenia. A Indonésia é signatária de um tratado da ONU que não permite executarem pessoas com distúrbios mentais. Rodrigo foi fuzilado independente de seu estado mental. Outro fato que causa espanto é sobre a condenação do líder religioso muçulmano Abu Bakar Bashir, mandante confesso do atentado terrorista em Bali, em 2002, onde morreram mais de 200 jovens numa boate. O sujeito foi responsável por matar 200 pessoas, pegou apenas 20 anos de prisão e saiu com 10, por bom comportamento. E para terminar, mais um exemplo das incongruências da Indonésia, se você for condenado à morte por tráfico de drogas e conseguir juntar uma boa quantidade de dinheiro, é possível subornar um advogado específico, que conhece um promotor e juiz corruptos, que irão reduzir sua sentença à prisão perpétua, depois a 20 anos e, por bom comportamento, você sai após 10 anos de prisão. Sou e sempre fui contra a pena de morte sobre qualquer hipótese. Não acho que o Estado possa ter o direito de ceifar a vida de ninguém. Poderia citar muitas as razões para isso, mas vamos deixar para depois.
Omelete: Como foi a sua reação diante da notícia da execução do Curumim e o quanto isso foi um impacto para o filme?
Prado: Recebi a notícia que Curumim seria executado por ele mesmo, no início de janeiro de 2015, duas semanas antes do dia fatídico. A princípio, eu não acreditava nisso, pois ele já havido passado por essa situação pelo menos duas vezes, sendo a última delas em julho de 2012, quando iniciamos o documentário. Falamos diariamente nessas duas últimas semanas e eu tentava acalmá-lo dizendo que a notícia não passava de um blefe, uma jogada política do presidente Joko Idodo, que precisava se firmar mediante a opinião pública e que, em cima da hora iria retroceder quanto à sua decisão. Foi muito angustiante acompanhar o desespero dele ao longo desse tempo. Dois dias antes de ele ser levado para o isolamento, o Embaixador do Brasil em Jakarta ainda tentou amenizar seu desespero, dizendo-lhe que havia conseguido um apelo jurídico e que ele não seria mais fuzilado. Quando eu soube que a tia do Curumim havia embarcado para a Indonésia, percebi que não havia mais nada a se fazer. Na hora da execução, no dia 18 de janeiro, me juntei a alguns amigos do Marco na praia do Pepino, fizemos uma roda de oração e nos despedimos dele. Nunca pensei que passaria por uma barbárie dessas na vida.
Omelete: E o quanto isso refletiu na estrutura do filme?
Prado: A idéia inicial do projeto de documentário sobre o Marco Archer seria fazer uma abordagem de longo prazo, em três atos: sua biografia, os longos anos no corredor da morte e, por fim, seu retorno ao Brasil e suas futuras escolhas na vida. Com a sua execução, resolvemos focar numa estrutura narrativa que contasse o dia a dia dele no presídio, como se fosse um diário do bordo de dentro do corredor da morte, entrecortado com pequenos trechos biográficos da vida dele e alguns temas que dão suporte a questão principal do filme, que é a pena de morte. Fiz questão de sublinhar nessa estrutura a participação do Curumim na confecção do filme e sua vontade em deixá-lo como um legado.
Omelete: Você enxerga algum grau de heroísmo trágico na história do Curumim? O que a morte dele nos deixou como legado?
Prado: Acho que a história do Curumim não se encaixa na da idéia do “heroísmo trágico” e sim dentro da “trajetória do anti-herói”. Uma coisa é certa para mim: desde de que fui convidado por ele para contar sua história, tive como principal motivação o seu arrependimento e a vontade dele de deixar um filme para que outros jovens não seguissem seus passos. Se a trajetória dele iria se completar, nunca saberemos. Mas a morte do Marco Archer não pode e não vai ser em vão. Por isso minha vontade é que esse documentário possa ser visto e debatido nos sete cantos do planeta, principalmente, pelo público jovem. Toda geração teve, tem e terá alguém com a trajetória do Curumim. A questão do tráfico de drogas, tão polêmica e ainda sem solução, nunca irá ser resolvida com a execução de um traficante, independente se ele for branco ou negro, rico ou pobre, do morro ou do asfalto.
Omelete: Qual é o papel do documentário nestes tempos nos quais qualquer celular é empregado para registrar fatos do dia a dia?
Prado: Boas histórias devem (e têm que) ser contadas, sempre - independentemente do formato em que são captadas.