Não se engane pela juventude, muito menos pela postura durona de Kat: a adolescente punk viveu o suficiente para entender como poucos o que significa ter uma vida marcada por tragédias e traumas. Ainda muito nova, quando um passeio comum ainda soava tão emocionante como uma grande aventura, ela perdeu seus pais em um acidente de carro e, desde então, uma sucessão de transferências, bullying e desmontes institucionais a levaram a manter distância de tudo e de todos. Seu muro particular, alto e sólido, só começa a ruir graças a um encontro inusitado com dois demônios atrapalhados e ambiciosos, e ela se depara com a chance de lidar com seus problemas com um toque de mágica.
Unindo pomadas capilares capazes de erguer até os mortos e pelúcias demoníacas a temas densos, como o luto e a cultura do encarceramento, o diretor Henry Selick (O Estranho Mundo de Jack, Coraline) repete em Wendell & Wild o que já se tornou sua marca registrada e cria uma jornada emocional tão lúdica e diabólica, quanto profunda. E, embora o texto possa servir vez ou outra de muleta a esse propósito, isso está posto já no design dos personagens.
Ao descobrir ser uma donzela do inferno, por exemplo, Kat passa a transitar entre mortos e demônios, alguns mais assustadores do que outros, mas todos muito particulares — na variação entre cores mais frias, traços angulosos e esquisitices, não há padrão que os reja além de uma pulsão criativa rica. No entanto, nada é mais sinistro que os empresários determinados a transformar toda a região em um grande complexo de prisões. A ausência completa de compaixão e a mercantilização dos presos, seus traços mais gritantes de vilania, são traduzidos visualmente no seu jeito grotesco, com o cílios postiços cheios de rímel pesando na sisudez de um, enquanto o outro se espelha, sem embaraço, na figura de Donald Trump.
Essa mesma sensibilidade está expressa ainda na postura heroica de Kat, que por vezes é pega de baixo para cima, frisando sua grandeza e seu estilo — convenhamos, é impossível não torcer para alguém que desfila tão bem botas com plataformas enormes, cabelos verdes e um boombox —, assim como no acolhimento que, mesmo mortos, os traços mais arredondados dos pais da protagonista trazem, sem que digam uma palavra. Porém, verdade seja dita: o charme da animação se deve muito à escolha do stop motion como técnica. Se por um lado os movimentos menos límpidos, quase truncados, servem muito bem ao caráter de terror da aventura, por outro representam um respiro para um tipo de produção que, com o domínio da Disney, teve a uniformidade e o realismo fofo como mantras. Não à toa, mesmo assistindo pela televisão, Wendell & Wild toma a tela com tanto vigor e prende o espectador até quando a amarração da história deixa a desejar. E, infelizmente, ela deixa.
O roteiro assinado por Selick e Jordan Peele — que, ainda, dubla um dos demônios principais ao lado do companheiro de longa data, Keegan-Michael Key — abre muitas subtramas que, embora relacionadas, não são bem arrematadas. Na realidade, conforme a animação vai se encaminhando para o final, ela parece até esbaforida tamanha a quantidade de personagens e pequenos conflitos que precisa equilibrar, desde a história central de Kat e os sonhos da dupla de demônios até a reunião municipal para impedir a construção da prisão. No fundo, nessa avalanche de informações sobram boas intenções, na mesma medida que lhe falta objetividade.
Entretanto, diante de um retrato tão honesto, engraçado e belo para as dores das crianças marginalizadas — seja pelo sistema, seja pelo preconceito —, a animação cumpre sua função como arte, sem poupar os pequenos dos sustos e eventuais corações partidos. E, ao propor a ideia de levantar parques de diversões assustadores em vez de prisões, Wendell & Wild oferece esperança, um bem tão necessário em tempos ainda muito obscuros.