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Trapaça | Crítica

Rasgando a fantasia

06.02.2014, às 17H13.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H47

Fazia três décadas, desde Reds (1981), que um filme não conseguia indicações para as quatro categorias de atuação no Oscar, e o diretor David O. Russell não só quebrou o tabu como o fez dois anos seguidos, com O Lado Bom da Vida em 2013 e agora com Trapaça - que tem indicações para Christian Bale, Amy Adams, Bradley Cooper e Jennifer Lawrence, além de outras seis, incluindo melhor filme, na cerimônia de 2014.

trapaça

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Não foi por agrupar talentos fora do comum que Russell conseguiu a proeza, e sim pela forma como ele dirige atores e atrizes para extrair interpretações que chamam atenção para si. Os filmes do diretor operam numa espécie de realidade aumentada, onde tudo fica um tom acima - o humor, as tragédias, as neuroses, os enfrentamentos. É uma releitura do tipo de atuação que Martin Scorsese, uma das principais influências da geração de Russell, procura em alguns de seus filmes sobre a América e a história italo-americana, resquício da formação de Scorsese determinada pelos melodramas do Neorrealismo italiano.

Em Trapaça, o roteiro de Eric Warren ficcionaliza a história real da Abscam, uma operação montada pelo FBI em 1978 para flagrar más condutas de congressistas dos EUA. Naquele ano, o FBI forjou a Abdul Enterprises e inventou um xeque fictício, Kraim Abdul Rahman, para filmá-lo oferecendo dinheiro a políticos dos EUA em troca de favores políticos. O peão da operação era Melvin Weinberg (vivido por Christian Bale no filme), um malandro condenado pela Justiça que foi contratado pelo FBI unicamente para liderar a operação.

Estamos ainda na ressaca do Watergate, e a renúncia do presidente Richard Nixon em 1974, depois de assumir ter espionado rivais políticos, abalou a confiança dos americanos não apenas nas suas instituições (como a presidência em específico e os políticos em geral) mas também, em larga medida, naquilo que entendemos como o real. Trapaça começa, portanto, feito de pessoas que enganam e se autoenganam para forjar uma realidade melhor: o malandro careca que finge ter cabelo, a caipira que finge ser britânica, o filhinho da mamãe que acredita ser um superagente secreto.

Nas excessivas duas horas e tanto do filme, feitas de golpes e reviravoltas como num típico filme-de-assalto, o tema que nunca deixa de se impor sobre os personagens é o dessa desconfiança diante das imagens que fabricamos, diante do mundo. Não por acaso, em uma das cenas mais inspiradas do filme, Amy Adams e Bradley Cooper escolhem como válvula de escape o Studio 54 - paradoxalmente, a famosa discoteca onde drogas que anestesiam os sentidos eram liberadas - e chegam ao orgasmo sob promessas de que serão "reais" um ao outro. Nos EUA pós-Nixon de Trapaça, a realidade é um espécie de utopia.

Então faz sentido aqui - mais do que em filmes como O Lado Bom da Vida, por exemplo - que David O. Russell escolha filmar tudo com seu viés de realidade aumentada. Assim como era possível encontrar uma autenticidade nos estereótipos de tragédia americana de seu filme O Vencedor (que tinha menos indicações ao Oscar mas é bem melhor que Trapaça), Melvin e companhia carregam consigo - em seus figurinos decotados, seus penteados exuberantes, seus comportamentos excêntricos - uma melancolia verdadeira de quem veste camadas e mais camadas de Sonho Americano.

Nesse aspecto, Trapaça tem muito a ver com O Lobo de Wall Street, o filme que coloca Russell em confronto direto com Scorsese na premiação. Ambos os filmes trabalham com realidades que são forjadas por projeções (de sucesso, de felicidade) e alimentadas pelo dinheiro (que não parece nunca se esgotar, embora o agente do FBI interpretado hilariamente por Louis C.K. proteste o tempo todo contra o desperdício). Comparar os dois filmes ajuda a entender também as limitações de Russell, porque enquanto o fôlego de Trapaça parece se esgotar bem antes do final, O Lobo de Wall Street poderia durar por horas, enquanto se dispusesse a testar os limites do bom senso, da consciência, do corpo, da física...

Trapaça | Cinemas e horários

Nota do Crítico
Bom