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Crítica

Trama Fantasma | Crítica

Filme de Paul Thomas Anderson envolve pelo exercício pendular de jogos afetivos de poder

21.02.2018, às 17H37.
Atualizada em 02.03.2018, ÀS 18H03

Um mal resolvido complexo de Édipo é o principal traço da personalidade de Reynolds Woodcock, o estilista vivido por Daniel Day-Lewis em Trama Fantasma. Isso fica assinalado na sua escolha de ofício, na solteirice, nos diálogos sobre o passado de Reynolds, na onipresença de sua irmã como mãe substituta. À parte as idiossincrasias de workaholic de Reynolds, Day-Lewis não tem muito material funcional com que trabalhar para dar forma ao seu personagem, o que oferece um desafio interessante ao ator, conhecido pela pesquisa e pela preparação intensiva para compor seus tipos.

Reynolds surge para nós, em boa medida, como um tipo unidimensional, mesmo porque o filme sugere logo de cara que a repetição de comportamentos é uma questão central da sua personalidade, quando vemos ser dispensada da sua casa a atual namorada do estilista (cada escolha de informação nessa exposição inicial ganha um peso a mais, porque todos os gestos de Reynolds têm em si uma gravidade própria). O roteirista e diretor Paul Thomas Anderson usa essa gravidade para nos prender de início, porque no mais o mundo da alta costura dos anos 1950, em que a trama se passa, pode soar bastante alheio e até desinteressante para o espectador.

Para a coprotagonista de Reynolds, a bela garçonete Alma (Vicky Krieps), porém, temos o oposto: a tela em branco da alvura do seu rosto, seu sorriso discreto e misterioso de Monalisa. De Alma sabemos pouca coisa a título de informação funcional. Sabemos que é bela e jovem, que é garçonete, que emigrou para a Inglaterra (o sotaque da atriz luxemburguesa não permite determinar de onde vem Alma, o que não impede uma personagem aristocrática de julgar sua origem de expatriada com desdém). Reynolds conhece Alma, apaixona-se e é correspondido, e a dinâmica que os dois estabelecem poderia, pelo hábito, seguir uma lógica de Pigmalião: Reynolds toma a humilde Alma como musa e a molda à sua semelhança.

Trama Fantasma se recusa a se acomodar nessa expectativa, porém, e o filme de PTA se desenrola como um atraente exercício pendular de jogos de poder. A tal trama fantasma, título que se pega emprestado da costura, é justamente esse vaivém com que Reynolds e Alma desenvolvem uma relação abusiva cheia de carências e compensações, que não apenas se presta a criar uma personalidade rica para Alma como, principalmente, aos poucos humaniza Reynolds e permite que Daniel Day-Lewis marque (ou encerre, se for mesmo se aposentar) sua carreira com mais um ponto alto, um personagem complexo, ao mesmo tempo forte e absolutamente vulnerável.

O controle que PTA exerce sobre o andamento do filme (que é puxado para o suspense mesmo antes da trama enveredar por ameaças físicas literais) torna esses jogos irresistíveis de ver, porque rapidamente notamos que os personagens, embora pareçam senhores de suas ações, estão muito à mercê desse controle. Se PTA sempre foi conhecido pelo rigor da forma nos seus filmes, e pelo andamento também rigoroso com que acelera ou dilata a ação, em Trama Fantasma isso fica mais sinuoso e não tão latente. Se é isso que se convencionou chamar de maturidade na obra de um artista, então Anderson realmente começou a depurar suas obsessões formais, ou pelo menos escondê-las melhor de acordo com a conveniência.

O design de som que amplifica barulhos discretos do dia a dia só para perturbar Reynolds é um exemplo desse controle. Outro, bastante forte, é a cena do desfile. Começa com movimento constante e cadenciado, aparentemente harmônico, e então a música de Jonny Greenwood se intensifica; os planos ficam mais curtos, sentimos o ritmo acelerar, e o desfile é estragado - essa mudança no compasso antecede o momento em que Reynolds se mostra insatisfeito ao preparar uma das suas modelos, a última. É como se a própria quebra no ritmo, "exterior" ao filme e de fora pra dentro, tivesse perturbado o protagonista e frustrado seu trabalho, forçado o erro.

Esse trecho ilustra como o filme é minuciosamente pensado como um exercício formal, ao mesmo tempo em que seu estudo de personagens dá todas as ferramentas, o tempo e o espaço para Lewis e Krieps ganharem autonomia como criadores, cenicamente. Aliás, Trama Fantasma se passa nos anos 1950 mas é tanto um filme sobre a relação dos dois protagonistas, de câmara, enformada pelas dinâmicas do dia a dia de casal, que mal podemos determinar em que tempo se passa - mesmo porque os contornos da aristocracia londrina realmente não mudam tanto com o passar dos anos. Criar interesse e empatia por esses personagens é outra vitória de PTA, embora ao fim percebamos que o laço de Reynolds e Alma se forma também porque são ambos outsiders sociais - como o roteiro cirurgicamente pontua ao final, no crepúsculo profissional do fazedor de vestidos, de repente tornado diante de nós um pária como Alma.

Nota do Crítico
Excelente!