Filmes

Crítica

Rainhas do Crime

Filme de máfia irregular adapta quadrinhos melhor que muita história de super-herói

08.08.2019, às 16H42.

Dada a hegemonia das obras inspiradas em quadrinhos no cinema americano, é notável que tão poucos filmes se proponham de fato a fazer uma adaptação não só do material mas também da linguagem das HQs nas telas. Os filmes que mais se aproximam disso, como Anti-Herói Americano ou Watchmen, partem logo para a mimetização ou a franca fetichização.

Rainhas do Crime, longa baseado na HQ The Kitchen da DC/Vertigo, estreia no circuito ao mesmo tempo em que The Boys chega ao streaming, e a comparação ilustra bem como é possível se aproximar ou se distanciar da linguagem das HQs, independente da fidelidade ao material original. Enquanto The Boys está mais afinado com a gramática televisiva (planos de contexto, câmera fechada, diferenciação clara de núcleos, nos filtros de cor), Rainhas do Crime esboça uma adaptação mais "quadrinesca", ainda que não fale sobre super-heróis ou mundos de fantasia.

Na trama, Melissa McCarthy, Tiffany Haddish e Elisabeth Moss vivem as esposas de três gângsteres da máfia irlandesa na Cozinha do Inferno em Nova York, fim dos anos 1970. Quando eles são presos, elas acabam entrando para o ramo da extorsão como forma de sustento. Longe de ser um ambicioso épico criminal e geracional, Rainhas do Crime tenta encontrar seu espaço num gênero que já rendeu alguns dos filmes mais incensados da história. Seu parentesco direto é com Cães de Guerra, de Todd Philips. Em comum, ambos começam como comédia, encabeçados por humoristas, e terminam como tragédia - uma forma de emular os filmes de gângsteres sem perder a carta-curinga do viés satírico ou da farsa.

Em Rainhas do Crime, o caráter cômico não está tanto nas interpretações e nas situações, e sim na montagem que favorece a punchline ágil, nos enquadramentos fixos frontais que evidenciam o ridículo dos bandidos fuleiros, na reconstituição plastificada e semicaricata da NY setentista. De Rainhas do Crime já se espera certo grau de comicidade a priori, a partir do momento em que McCarthy estampa o cartaz do filme. O truque da roteirista e diretora Andrea Berloff logo de cara é confundir essa expectativa e trazer o cartunesco para a receita (é assim, ademais, que ela se permite fazer um filme bem violento sem ultrapassar os limites do aceitável).

Ora, não só essa opção deliberada pelo cartunesco mas também as escolhas formais de Rainhas do Crime têm a ver com a linguagem dos quadrinhos: seja nos planos estáticos que prezam pela organização de informação visual ou sua função dramática (como o formato chapado, frontal, do quadrinho), seja nas elipses de tempo ditadas pela economia narrativa (como na página, onde muita coisa fica inferida só nas lacunas entre quadros), seja no uso constante de plano-e-contraplano para resolver situações (as negociações das mafiosas com seus "clientes" são como quadros cujo sentido é dado pela combinação). Se montagem é um elemento comum, de certa forma, tanto às HQs quanto ao cinema, Berloff a valoriza nessa aproximação, e Rainhas do Crime se mostra um filme muito bem montado, de exposição envolvente, em todo o seu primeiro terço.

A caracterização de Nova York é peça central nesse jogo. O registro de época exige que muita coisa seja criada digitalmente para refazer o panorama da Manhattan deteriorada de então, e o resultado frequentemente fica “pintado” nos fundos, seja quando o carro atravessa a ponte do Brooklyn, seja diante dos cinemas pornô da Broadway. Dá pra notar quando entra a composição de CGI porque sua artificialidade é visível, o que "ajuda" a deixar mais o fundo com uma cara plastificada, uma camada artificial que ao invés de nos tirar do filme tem o efeito contrário e nos situa perfeitamente numa realidade regida pelo efeito e sempre no limite do cartunesco.

Rainhas do Crime tem seus problemas, principalmente a dificuldade de manter o fôlego do meio para o fim; a reviravolta no clímax, que tem mais valor de choque do que sentido propriamente, não ajuda muito nisso. Mesmo assim é muito clara e objetiva a forma como Berloff se apropria do cartunesco para pegar o espectador no contrapé, inserindo questões sérias sem pudor quando menos se espera (como quando a mãe de Ruby justifica uma surra que deu na filha), sob o véu do lúdico. A violência em Rainhas do Crime está menos na imagem (muita coisa fica só sugerida, como na cena da banheira, onde só aparece a faca) do que no texto despudorado. No mais, Berloff encontra um meio termo ideal entre o pesar, o choque, a caricatura e a banalização proposital, na hora de filmar a sucessão de assassinatos.

Em outros longas, provavelmente a cena em que Burns e Duffy apanham no bar teria o triplo do tempo; em Rainhas do Crime é apenas um plano, muito sintético: os dois sentados ao balcão, de frente para a câmera, depois sentindo a aproximação da surra, que acontece sem corte, economicamente escondida no extracampo, tampada pelo balcão. Nessas horas a gente percebe como a produção média do cinema americano desaprendeu a concisão, quando o que chama a atenção num filme é o uso decente de elipses e a economia de planos. Aliás, a comparação sacramental: Berloff parece Scorsese nas cenas de montage, porque nunca descuida do ritmo, e inclusive o uso ostensivo de canções em Rainhas do Crime provavelmente se inspira, para se legitimar, na forma como Scorsese tirou proveito de clássicos dos Rolling Stones nesse tipo de cena, em seus filmes de máfia.

Imperfeições à parte, o que temos aqui é um filme que sabe contar o que quer, e que sabe também como aproveitar a linguagem dos quadrinhos para potencializar esse relato. 

Nota do Crítico
Ótimo