O Irlandês/Netflix/Divulgação

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Crítica

O Irlandês

Martin Scorsese volta à Máfia em melancólica elegia cristã sobre pertencimento e culpa

19.11.2019, às 11H06.
Atualizada em 04.02.2020, ÀS 10H45

Embora tenha dirigido mais de 30 longas, de documentários a romances de época, Martin Scorsese costuma ter seu nome associado ao filme de gângster especialmente depois que Os Bons Companheiros sacramentou nos anos 1990 um estilo de narrar e uma estrutura de roteiro que seus seguidores, de Tarantino a Fernando Meirelles, replicariam pelas décadas seguintes. Essa ligação, portanto, em algum momento deixou de depender da própria obra do cineasta; Scorsese virou sinônimo de história de máfia pela própria capacidade de reverberação desses relatos.

Antes disso, porém, talvez esses filmes tenham um poder incomum de ressoar com seu público porque afinal eles tratam dos fundamentos existenciais do mundo dos homens. Embora partam do ponto de vista autobiográfico do imigrante brutalizado, em busca desesperada por pertencimento e propósito, há neles uma síntese da hombridade. É como se Caminhos Perigosos, Gangues de Nova York ou O Lobo de Wall Street fossem no nervo da condição humana e entendessem a fundo como o tribalismo é capaz de atribuir sentido à vida de homens pequenos, sejam bêbados iletrados ou especuladores hedonistas da Bolsa.

O Irlandês sugere uma elegia não só para esses personagens mas também para todo esse gênero, do qual, afinal, Scorsese entende ser devedor. Se ele consegue juntar Robert De Niro, Al Pacino e Harvey Keitel e tirar Joe Pesci da aposentadoria, isso se dá muito sob a justificativa do testamento; os desafios tecnológicos de rejuvenescer os atores neste épico geracional ficam em segundo plano diante da oportunidade de passar coletivamente a chave nesse compêndio de histórias que, por fim, ajudou a moldar o cinema da Nova Hollywood adiante.

(A tecnologia, em si, não seguraria o filme como atração, ademais: ela é ótima para redesenhar a fisionomia do De Niro mais jovem, mas um ator de 76 anos continua falando com o timbre de um septuagenário e se movimentando em cena como uma pessoa de 76 anos. No mais, Scorsese está mais para Matt Reeves do que para Peter Jackson, no sentido de entender a tecnologia como uma ferramenta narrativa dentre várias, e não como um fim em si mesma.)

O distanciamento daqueles anos raivosos de juventude faz de Scorsese em O Irlandês um narrador agridoce e principalmente bem humorado - e esses dois elementos são os definidores do tom e da cara do filme. Até os zoom-ins estão menos agressivos, e a montagem de Thelma Schoonmaker não acelera cortes entre planos desnecessariamente, mesmo nos momentos de agitação. Pela própria duração de três horas e meia, já ficaria sugerido que o modo de operação escolhido em O Irlandês não é a escalada de tom e ritmo, mas sim a sedimentação.

Nada mais justo, afinal a narrativa em primeira pessoa aqui define o registro como um todo: Frank Sheeran (De Niro), o irlandês do título, líder sindical e assassino predileto da Máfia, conta-nos a sua história em retrospecto, como um Brás Cubas, enquanto estaciona sua cadeira de rodas numa sala tranquila do asilo onde mora. Sheeran está no fim da vida, carrega silenciosamente arrependimentos e culpas, e, como bom católico, teme os castigos que lhe esperam no além-vida, embora isso ele não nos diga. Dos filmes de Máfia de Scorsese talvez este seja então o mais machucado pela cristandade; os anéis dos mafiosos têm um brilho episcopal e Sheeran fala de morte sem se afetar enquanto teme a morte profundamente.

O Irlandês então trabalha com o acúmulo das coisas (pecados, acusações, julgamentos) enquanto se encaminha à penitência definitiva, que é o gesto de Frank Sheeran que maculará de vez seu contrato tribal com seus parceiros, o arco narrativo da perdição de Jimmy Hoffa (Pacino). (Dos encontros de De Niro e Pacino no cinema depois de Fogo Contra Fogo, este aqui também tem um caráter de definição: O Irlandês é dos dois atores, engajados num duelo franco de estilos opostos.)

Fiel ao ponto de vista de seu narrador-penitente, poucos momentos no filme registram o sangue e a violência frontalmente; ora o sangue é estilizado como anedota (jogado na parede como a tinta do pintor de casas), ora a câmera se vira envergonhada de costas para a morte (a execução no barbeiro, em que a câmera busca o refúgio melancólico dos buquês de flores, é muito diferente da execução que ela ecoa de O Poderoso Chefão). Na sua contação de história que tenta refazer o imaculado, Frank Sheeran está, na verdade, pedindo ao espectador que o perdoe pelo que conta. Quando filmada frontalmente, a violência é amenizada pela estilização, pela câmera lenta, pelo sangue digital. Mesmo as explosões criminosas da Máfia são feitas a meia distância ou deixadas implícitas (como a da lavanderia).

Se não buscasse o extracampo para encenar a violência mais impactante, se não virasse o rosto na hora H, então Sheeran estaria assumindo para si que as mortes que provocou realmente são um atestado do definitivo. Ele diz no final que prefere a cova e não gostaria de ser cremado quando morto, porque a cremação é "mais definitiva". Os diálogos finais e a encenação com apagar de luzes do asilo tornam mais palpável o caráter espiritual de O Irlandês. De uma forma ou outra, os filmes de gângster de Scorsese sempre versam sobre a vulnerabilidade tremenda desses homens que precisam se unir em bando para suplantar os limites da vida, e não seria diferente neste filme sobre o fim da vida. Na verdade, O Irlandês faz disso todo o tema do seu épico, cuja punchline mira no vazio.

Cada um reage ao seu modo, e que contraponto incrível faz a Sheeran o incontrolável Jimmy Hoffa de Pacino, gesticulando e preenchendo espaços como se sua única razão de viver fosse justamente preservar a juventude. A memória é uma coisa inclemente, porém, e a jornada de Hoffa termina não na sua morte, mas no apagamento quando a enfermeira diz que não o conhece. É muito frágil, afinal, o controle que se tem sobre a vida e a história, e a pequenez de Hoffa quando machucam seu ego remete à de Joe Pesci quando riem dele em Os Bons Companheiros. Sendo O Irlandês uma crônica bem humorada sobre velhos rabugentos, uma história de como é flácida a pegada que temos ao agarrar a vida, esses instantes de ego e fragilidade se intensificam.

E aí Scorsese encontra enfim o ambiente e os pretextos ideais para executar cenas de assinatura que nos revelam de modo operístico como é trágico o controle frágil que os homens têm sobre o mundo ao seu redor. A cena do jantar de premiação de Sheeran ecoa a cena do telefonema de Cassino: ambas denotam fisicamente a distância (a comunicação falha em Cassino, a dança das vedetes do jantar enquanto Sheeran observa longe Hoffa discutindo com a chefia) para nos mostrar como, apesar de todos os esforços mais exaustivos de planejamento, intriga e execução, e mesmo no momento de auge do reconhecimento, nunca é possível ser onisciente mesmo do que está a poucos passos de nós.

À falta da imortalidade, que recurso resta? Aos planos de O Lobo de Wall Street que enquadravam as orgias da firma de forma quase renascentista, O Irlandês retruca reutilizando o recurso para eternizar os mafiosos lado a lado numa pintura que preserve pelo menos suas caricaturas, como na cena do casamento da filha do advogado. O que seria desses homens, afinal, sem o relato que os engrandece? Há no filme, acompanhando o pedido de reparação, um ambiente de embalsamamento que acompanha esses personagens o tempo todo, como a luz da Flórida na cena da trégua de Hoffa e Provenzano (Stephen Graham), que envolve os personagens em um acordo santo de autoimportância.

Que Pacino exercite então toda a sua veia cômica e desfaça em gags a solenidade do momento é um desses prazeres de assistir a O Irlandês, e testemunhar a sabedoria de quem está falando das coisas mais profundas do mundo mas já olha para si sem se levar tão a sério assim, sem o peso de provar mais nada a ninguém.

Nota do Crítico
Excelente!