Woody Allen não inventou a manic pixie dream girl - aquele estereótipo da jovem bela, feliz e descomplicada que surge em cena para libertar os homens atormentados de suas neuroses - mas as MPDGs frequentam os filmes do cineasta pelo menos desde Annie Hall e Manhattan. Das musas recentes de Allen, Emma Stone é quem melhor se encaixa na definição, e depois de Magia ao Luar ela volta a exercer a função em O Homem Irracional (Irrational Man).
Sai Colin Firth, o ilusionista ateu e niilista que renasce com o amor, e entra Joaquin Phoenix, no papel de um professor de filosofia ateu e niilista que renasce com o amor. É como se Allen, de um filme para o outro, decidisse descascar mais uma camada da cebola, em direção ao núcleo, e basicamente tornar essa relação arquetípica com a garota de sonho não um subtexto mas o texto: a dificuldade de Phoenix se relacionar, de transar, sua visão de mundo pessimista, seu impulso suicida - enfim, tudo aquilo que torna um homem candidato a receber a visita de uma MPDG no cinema - são o centro da discussão e do drama em O Homem Irracional.
A volta de Darius Khondji como diretor de fotografia, com quem Allen tem feito a maioria de seus filmes desde Meia-Noite em Paris, demarca o clima onírico, com aquelas imagens embaçadas de tardes bucólicas de inegável prazer burguês. Como em muitos filmes de Allen que parecem nascer de uma anedota, O Homem Irracional trata o meio-ambiente elitista do campus na Nova Inglaterra como uma caricatura dos caprichos que os ricos tratam como trivialidade: os passeios de cavalo, as aulas de piano, os recitais, a jovem de família que apresenta tediosamente as pinturas famosas que tem em casa.
De filme a filme, desde que tornou essa questão do dinheiro um problema em Blue Jasmine, Allen parece olhar de forma cada vez mais agridoce para os privilégios da vida. Acumulam-se nesses filmes coisas que os personagens julgam, inconscientemente, menos uma conquista e mais um direito de nascença: o belo horizonte no jardim de casa, um noivo jovem perfeito e dedicado (ainda que boçal), rotinas pacatas, pais amorosos. É difícil diagnosticar no olhar de Allen um rancor diante dessa elite que ele filma - mesmo porque o sentimento primeiro nos seus filmes, que ele divide com seus protagonistas homens, é o da autodepreciação (repare no orgulho velado com que Phoenix se deforma, curvado, barrigudo) - mas isso não significa que o rancor não esteja lá.
Se O Homem Irracional aos poucos se transforma, de um filme de boy-meets-girl cabeça, lúdico e luminoso para uma tragédia moral como aquela de Match Point ou O Sonho de Cassandra, é porque Allen não consegue esconder esse julgamento que vai fermentando, tendo como réus personagens incapazes de medir seus privilégios. No centro disso está o privilegiado maior: o homem que inexplicavelmente encanta todas as mulheres ao seu redor, mitômano (a lorota do amigo falecido no Iraque) e delirante, e que depois não verá problema nenhum em abrir mão da MPDG depois de reconquistar sua auto-estima - desfecho amoroso disfarçado de solução policial.
Ainda que seja um dos longas recentes mais irregulares de Woody Allen, nessa transição de comédia para drama (um drama, ademais, que talvez fique claro desde os silenciosos créditos iniciais, que Allen não acompanha com seu jazz característico), O Homem Irracional gera interesse por ser, no fim, um filme bastante pessoal e até confessional, contado pelo ponto de vista de quem goza não só de privilégios próprios mas também do amor de uma mulher jovem na terceira idade, como Allen.