Filmes

Crítica

O Espetacular Homem-Aranha | Crítica

O Razoável Homem-Aranha

17.10.2014, às 12H01.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H40

Ao ser picado por uma aranha radioativa, o franzino Peter Parker recebe a força e a agilidade proporcionais às de uma aranha, além de um sentido que permite fazê-lo pressentir o perigo. A beleza da história, criada por Stan Lee e Steve Ditko no início da década de 1960, reside no fato de que um nerd, extremamente impopular no colégio, alvo de bullies, e sem as ferramentas sociais que lhe valeriam uma namorada, amigos ou um lugar no grupo, é subitamente embuído desses poderes que lhe transformam a vida por acaso, mas não necessariamente de uma maneira positiva.

O Espetacular Homem-Aranha

O Espetacular Homem-Aranha

O Espetacular Homem-Aranha

O Espetacular Homem-Aranha

O Espetacular Homem-Aranha

O Espetacular Homem-Aranha

Peter Parker só quer estudar e ser deixado em paz. Provavelmente construiria a próxima Apple ou Microsoft ou uma gigante farmacêutica se tivesse a oportunidade - mas, ao ser amaldiçoado com grandes poderes, recebe também sua lição de grandes responsabilidades - e passa a ter que equilibrar sua vida pessoal com o seu alter-ego, o Homem-Aranha, prejudicando ambas as identidades. Não estuda direito, não é um herói direito, não tem dinheiro, mas adquire confiança, não abaixa a cabeça e sabe o que deve ser feito, buscando um futuro melhor não apenas para si, mas para o mundo em que está inserido.

Esse Peter Parker é o espelho da adolescência idealista, que enfrenta confusões e mudanças, um personagem que resiste ao teste do tempo sem grandes alterações há 50 anos.

Em O Espetacular Homem-Aranha, atualização do personagem para os cinemas, Peter Parker não é uma vítima, mas um herói desde o início. A ideia parece boa a princípio, mas se analisada diminui o conceito de quem é e como foi criado o personagem nos quadrinhos. Parker, na pele de Andrew Garfield, não tem nada de desajeitado: anda de skate, usa lentes de contato e enfrenta valentões de peito aberto - ao receber seus poderes, a única mudança é que ele efetivamente consegue derrubá-los. A ideia rouba do personagem sua premissa básica, inspiradíssima na versão de Lee e Kirby, na qual Peter nunca desejou tais poderes e precisa, diariamente, lutar para alcançar o homem em que foi transformado. O novo Peter Parker precisava desses poderes. A diferença é sutil, mas fundamental para que entendamos o quão genérica é esta nova versão do herói.

Focando-se somente no filme, deixando de lado o fã de longa data, a experiência do começo do longa é até agradável. Andrew Garfield, Emma Stone e Martin Sheen são fisicamente (apesar da idade 10 anos maior do casal protagonista que a que representam) e em tom escolhas excepcionais para os papeis de Peter, Gwen Stacy e Tio Ben. As interações entre eles são ótimas - e só melhoram na direção de Marc Webb (500 Dias Com Ela), que sabe muito bem como extrair atuações honestas desse tipo de cenas de intimidade. Mesmo que o romance se desenvolva de maneira meio estranha depois do excelente primeiro convite para encontro (basicamente, os dois vão do "que tal sairmos?" para um jantar com a família, sem escalas), a relação é tão bem atuada - e Stone tão adoravelmente reminiscente das HQs - que esse ato do filme soa honesto e dá vontade de rever. Apenas a Tia May de Sally Field está um tanto apagada, em parte devido ao foco no Tio Ben.

Mesmo que não sejam exatamente os que já conhecemos das HQs e da última trilogia - recente demais na memória para ser refutada por um reboot -, os personagens são ótimos. Mas o roteiro remendado de Alvin Sargent, James Vanderbilt e Steve Kloves exige uma carga extra de suspensão de descrença (maior do que acreditar que alguém vira uma aranha-humana ao ser picado) quando entram os elemento super-heróicos. A ciência, afinal, tem seus mistérios - e é poético e inspirador imaginar o que não sabemos, o que existe além da próxima esquina -, mas não dá pra aceitar que Gwen Stacy, uma mera estudante colegial de 17 anos, por mais brilhante que seja (e não vemos provas desse brilhantismo em momento algum), seja uma superestagiária-chefe em um dos maiores laboratórios de pesquisa do mundo, cheia de responsabilidades que serão a chave para a resolução da trama. A história, portanto, depende demais de coincidências convenientes para se manter em pé. Acompanhe: o pai de Peter está relacionado ao cientista Curt Connors, que por sua vez é chefe de Gwen Stacy, que estuda na mesma classe de Peter, que encontra a pasta de seu pai que contém documentos indispensáveis à pesquisa de Connors, na qual Gwen trabalha ativamente.

Essas escolhas em parte parecem motivadas pela necessidade de criar uma trilogia que tente emular o sucesso de Batman Begins de Christopher Nolan, em que o processo de desenvolvimento do herói está relacionado aos seus futuros inimigos. Diferente do filme da Warner, porém, em que essa trama funciona - pela natureza do próprio personagem - aqui parece tudo muito forçado. E se o game que acompanha o filme do Homem-Aranha também serve de pista, o fato de o vilão Lagarto e o super-herói serem farinha do mesmo saco genético também servirá para desenvolver a franquia em mais filmes, já que vários vilões clássicos do personagem saem dessas mesmas experiências com animais.

A escolha do vilão, vivido por Rhys Ifans, no entanto, é boa. Na trilogia de Sam Raimi, o Doutor Curt Connors já havia aparecido duas vezes, mas sempre numa promessa de tornar-se o vilão do filme seguinte. Agora, surge diferente dos quadrinhos (sem a sua família, algo fundamental para suas motivações nas HQs) e mais inteligente, falador até. Ainda que em algumas HQs o bicho retenha inteligência, ele destacou-se sempre como um fera enlouquecida no cânone. O antagonista funciona dentro das pretensões do filme, tanto como elemento que move a trama como oponente físico, garantindo a ação. Para os fãs, porém, sua participação na criação do próprio Homem-Aranha, a ligação com o pai de Peter e outras alterações em relação à origem consagrada podem parecer devaneios mercadológicos de produção.

Essa necessidade de recontar a origem - uma das mais inexplicáveis motivações do cinema recente, sendo que ela já foi contada há dez anos na mesma mídia e o filme passa com frequência em canais abertos e públicos - é problemática. Por que não começar o filme no colegial, com Peter já transformado? O público é tão burro assim que precisa de tudo explicadinho desde o início todas as vezes? Além de parecer desnecessária, essa ideia está muito mais preocupada em mudar o que já está estabelecido do que em mostrar uma história de como o Aranha tornou-se o Aranha.

O fato de que a história de origem dos pais do personagem, com uma rara e lamentável exceção rapidamente ignorada pelos leitores, nunca foi foco nas HQs, ajuda também no esvaziamento de importâncias na trama. O Tio Ben sempre foi a figura paterna de Peter, posição que o pai biológico jamais ocupou. Ao insistir na trama da busca das origens, o filme tira a força da relação de ambos, que é dramática para o entendimento das motivações do herói. Felizmente, Martin Sheen está ali para segurar a barra com sua presença e impedir que esse esvaziamento efetivamente ocorra.

Predisposição genética

Ao menos, na edição final, O Espetacular Homem-Aranha - que passou por inúmeras refilmagens - tenta minimizar um pouco as alterações em relação ao que elas pareciam ser se observadas todas as cenas e fotos divulgadas do filme e que não estão na versão de cinema. O Doutor Ratha, personagem que desaparece sem explicação depois da cena da ponte, por exemplo, em um dos trailers pergunta a Peter "você acha que o que aconteceu com você, Peter, foi um acidente? Você tem alguma ideia do que realmente é?", sugerindo que o personagem seria uma cobaia do pai, com uma predisposição genética para a transformação - à la Hulk de Ang Lee - e o verdadeiro componente "00". Essa linha dramática, da busca do pai e a "verdade sobre ele", é descaradamente deixada sem resolução (assim como a do ladrão da estrela no pulso), como um gancho para o próximo filme, sem qualquer sensação de conclusão. Se levarmos em conta a cena pós-créditos, parece que essa ideia lamentável, uma tentativa óbvia de aproximar Peter Parker de outros "garotos que descobrem que estão destinados a coisas maiores" de franquias cinematográficas ainda voltará... mas é cedo para reclamar.

Outros momentos dignos de nota, ignorados nos filmes de Sam Raimi, também são deixados de lado aqui. Enquanto em Batman Begins, uma das musas inspiradoras de O Espetacular Homem-Aranha, Bruce Wayne tem como obstáculos a criação de seu uniforme e aparelhos, aqui a produção opta por takes velozes dando apenas vislumbres de Peter Parker costurando sua roupa e construindo seu lançador de teias (o fluido de teia ele compra na Amazon... algo que não consigo nem comentar de desgosto e que é ainda pior que teias orgânicas). Enfim, trata-se de um filme de origem despreocupado com o "como" e mais interessado nos "porquês" (Por que ele se transforma? Porque já era um herói interiormente, porque procura seu pai, por causa de sua herança genética...)

Tecnicamente, porém, é uma produção competentíssima, toda filmada em 3-D (as cenas noturnas, um problema do formato, são bastante nítidas) e que busca usar a técnica de maneiras pouco vistas no cinema estereoscópico, como em sequências em primeira pessoa (pena que a música não acompanhe... a trilha sonora de James Horner foge à memória no instante em que o filme acaba). Nesse sentido, o resultado é ótimo e a ação empolga em vários momentos, com a caracterização do personagem em termos físicos mais fiel aos quadrinhos já vista nas telas. O herói se balança com leveza, assumindo posições e saltos típicos das HQs, um equilíbrio decente e satisfatório para a mal-desenvolvida história.

Enfim, Marc Webb fez um bom trabalho com o texto que lhe foi dado pelos produtores, pena que esse roteiro não esteja à altura do legado do personagem tanto nos quadrinhos, como no cinema. Se os produtores erraram ao forçar demais a mão em Homem-Aranha 3, arrancando de Sam Raimi sua liberdade criativa, e o perderam ao tentar fazê-lo mudar de ideia quanto aos vilões e o tipo de filme que Homem-Aranha 4 deveria ser, aqui erram com a mesma intensidade. Se tivesse este mesmo visual e técnicas e contasse com um roteiro menos preocupado em afastar-se do estabelecido, em direção a uma franquia inédita pelo ineditismo, que fosse mais interessado em apresentar uma história centrada, com começo, meio e fim, o novo Homem-Aranha seria realmente Espetacular. Como foi apresentado, talvez devesse ser rebatizado O Razoável Homem-Aranha.

O Espetacular Homem-Aranha | Cinemas e horários

No especial O Espetacular Homem-Aranha, o Omelete tem 1h40 de vídeos sobre o filme, artigos especiais e entrevistas. Para saber mais sobre o personagem e sua importância nas HQs, acesse também a página Homem-Aranha.

Nota do Crítico
Bom