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Filmes

Crítica

Mundo em Caos coloca Tom Holland em jornada gamificada de narcisismo

Adaptação dos livros de Patrick Ness faz do aspecto literal seu próprio sentido de ser

13.05.2021, às 17H50.
Atualizada em 13.05.2021, ÀS 18H09

Às vezes somos lembrados, mesmo quando não tem nada a ver com o assunto, que filmes e games são realmente duas expressões distintas, e quando uma emula a outra o ruído é perceptível. 

A adaptação ao cinema da série literária Mundo em Caos, por exemplo, começa com uma linguagem bem gamificada: Tom Holland transita num mundo semisselvagem com a câmera orbitando seu corpo, simulando uma perspectiva de primeira pessoa (inscrita tanto na imagem quando na voz dele em off), enquanto conhecemos com o protagonista os locais e limites do vilarejo onde ele mora. Nesse passeio resumido, surgem diante de Holland cinco personagens em uns 15 minutos, e a forma sintetizada como o filme os apresenta deixa bem claro: o que os define é o olhar do protagonista e como esses coadjuvantes interagem com ele a partir dali.

Se a direção de Doug Liman aproxima o filme dos jogos, a premissa intensifica isso. Em Mundo em Caos, a trama de ficção científica futurista diz que os colonos terráqueos desse planeta misterioso são marcados por uma peculiaridade: seus pensamentos se materializam no ar, e é possível ver esses pensamentos e ouvi-los em voz alta. Holland ouvirá então toda a cacofonia de vozes da qual faz parte e não consegue se isolar. Ora, na analogia com games, é como se todos os coadjuvantes que o cercam fossem NPCs (de “personagens não-jogáveis”) falantes de um RPG, com suas demandas paralelas, sem mistério, ditas em alto e bom som. Basta escolher a qual dar atenção.

Já logo de cara, então, o filme se posiciona muito claramente como uma narrativa individualizada: as jornadas dos coadjuvantes só existem em função do protagonista, porque sem ele - ou seja, sem a aproximação da câmera do jogador - essas histórias não seriam notadas e ouvidas, elas praticamente não existiriam, e o que desperta outras vozes no filme com frequência é o ruído do próprio herói.

Obviamente, toda narrativa precisa eleger um ponto-de-vista, organizar vozes, hierarquizar seus personagens. O caso é que Mundo em Caos faz disso uma coisa tão literal que é como enxergar - nas névoas que envolvem as cabeças dos atores - a matrix de zeros e uns que formam as contações de histórias. A premissa do filme, inclusive, deixa pouco espaço para a criação ativa do espectador, porque no voice-over Holland sempre se antecipa falando sobre o que vê, o que aconteceu e o que sente. Sobra pouco espaço para subtexto num filme onde absolutamente tudo vira texto, até a própria gramática do cinema.

Sem mistérios no horizonte da narrativa, sobra à nossa jornada ao lado de Tom Holland apenas as tarefas mecanizadas: seguir adiante, conduzir a donzela, atravessar o terreno hostil, desmascarar os antagonistas. Por que as linguagens de filmes e jogos causam estranheza quando se encontram? Por que não temos agência sobre como Tom Holland vai se mover, tomar decisões, ter encontros e conversar com estranhos. Embora se comporte como um game, Mundo em Caos é um filme e, como tal, estamos presos de modo passivo à perspectiva que se escolhe para nós - e isso pode ser altamente frustrante num filme que não sabe oferecer nada além da gamificação.

Para ser justo, Liman oferece, sim, uma coisa que é extrafilme: um caso de estudo sobre o privilégio, porque o que fica evidente aos poucos é que estamos diante de uma colossal situação de narcisismo. Todo um blockbuster de distopia scifi é construído em torno do dilema de como um garoto vai se comunicar com a garota pela qual se descobre apaixonado; o ponto de vista do protagonista não apenas é selecionado para nos conduzir, como também tudo o que é potencialmente instigante na alteridade desse mundo - o papel dos aliens, o olhar da garota estrangeira, a dinâmica entre colonos e astronautas - tem sua importância reduzida para que o herói primeiro resolva o seu problema de autoimagem. É sintomático que Tom Holland tire a roupa sem pudor, sem pensar muito sobre isso, porque o personagem, apesar de seus complexos de comunicação, não problematiza a própria nudez e “entende” que seu corpo é um objeto a serviço da ação, instrumentalizado no “jogo”.

No fim, além de evidenciar essa crise de linguagem dos games que sonham em ser cinema e dos filmes que tentam ser jogos, talvez Mundo em Caos tenha algo a dizer também sobre a literatura para jovens adultos que prospera em Hollywood, aquela que trivializa a potência de especulação da ficção científica para manter seus leitores na bolha confortável da supervalorização do ego. Não é a primeira vez que Doug Liman transita por esse terreno - em alguma medida, Jumper e No Limite do Amanhã também ofereciam universos de scifi organizados pelas regras do boy-meets-girl e do olhar masculino - mas talvez seja a primeira em que essa receita atinge estado de crise.

Nota do Crítico
Regular