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Crítica

Mark Felt - O Homem que Derrubou a Casa Branca | Crítica

Cinebiografia chapa-branca tira o potencial de suspense que envolve a história do informante mais famoso dos EUA

27.10.2017, às 14H33.
Atualizada em 27.10.2017, ÀS 15H03

Bastam duas cenas para caracterizar o biografado de Mark Felt - O Homem que Derrubou a Casa Branca, as duas que abrem o longa estrelado por Liam Neeson. Na primeira, os assessores do presidente Richard Nixon propõem que Mark Felt, o segundo homem no comando do FBI, traia J. Edgar Hoover em nome de uma aproximação com o presidente da república - sugestão que Felt rechaça com um sermão velado. Na cena seguinte, Mark Felt chega em casa, sua esposa o espera com um casal de amigos, todos bebem e dançam, mas Felt não se afeta pela celebração.

Tanto na esfera pública quanto na privada, portanto, Mark Felt era a epítome do comportamento correto. Liam Neeson aparece ao longo do filme como uma figura descolada dos demais; com 1,93m de altura, ele é o mais alto do elenco, e sua impostação de voz pausada, grave, também contribui para torná-lo ainda mais diferente. Talvez seja menos um caso de escalação equivocada (eu pelo menos fiquei sempre esperando o Neeson de Busca Implacável resolver todo o Watergate com chaves-de-braço) e mais uma decisão consciente de caracterização mesmo. Na sua figura de mármore, indiscutível, Mark Felt sequer parece capaz de errar.

Hoje se sabe que o Garganta Profunda (apelido que Felt ganhou da redação do jornal The Washington Post, com quem contribuiu com pistas durante o escândalo de Watergate que derrubou Nixon) foi o mais famoso informante da história dos EUA, e que assistiu a subordinados serem acusados de espionagem por sua causa. É obviamente oportuno que esse filme seja feito numa época em que Donald Trump acusa a mídia de conspirar contra a presidência e o país com suas investigações envolvendo o ex-diretor do FBI James Comey e o escândalo dos grampos da Inteligência da Rússia contra Hilary Clinton durante a campanha presidencial. A história se repete, enfim, quase 50 anos depois do Watergate, e sob a ótica dela, a história, é possível enxergar com distância e dar uma forma melhor aos personagens que a fazem.

A cinebiografia de Mark Felt não permite, porém, que seu personagem ganhe nuances de caráter que enriqueçam não sua história particular, mas a narrativa que o roteirista e diretor Peter Landesman oferece aqui. Mais exatamente, realizar um relato chapa-branca sobre um homem de conduta irrepreensível - cujo serviço prestado por 30 anos ao FBI se traduz num entendimento imovível do que a agência e sua missão representam - não parece ser a melhor forma de envolver o espectador numa trama de conspiração com seduções de lado a lado. A forma solene como Landesman conduz o filme (todo mundo parece se comunicar por discursos, mesmo a esposa de Felt) não ajuda a desfazer esse incômodo de que Mark Felt tem pouco a oferecer além de uma versão oficial, estanque, de toda essa história.

O que sobra é o impulso cinefílico de testemunhar o contraplano de Todos os Homens do Presidente, o mais famoso filme sobre o Watergate que Hollywood produziu, protagonizado pelos dois repórteres do Post que transformaram as dicas de Felt em documento histórico. Mark Felt não é exatamente um filme de fan services (Neeson não chega a dizer no longa a famosa frase "Siga o dinheiro", por exemplo) mas o elemento do Post obviamente é central nessa história, e qualquer completista (ou qualquer pessoa minimamente interessada pelo Watergate) deve ter em Mark Felt algum interesse.

Landesman ignora, porém, uma das lições deixadas pelo filme de Alan J. Pakula: a noção de que um personagem não precisa ser perfeito só para que a gente entenda sua correção moral. Os repórteres do Post vividos por Dustin Hoffman e Robert Redford no filme de 1976 eram jovens vacilantes, batiam cabeça, nunca foram dois Clark Kents. Já o Mark Felt de Liam Neeson parece realmente capaz de defletir qualquer mal, protegido por uma indiscutível agenda de boas intenções: seguir Hoover, proteger o FBI, ser um bom marido, respeitar as escolhas de sua filha, ser um avô amável. No fim, o elenco coadjuvante de Mark Felt se destaca (em especial Josh Lucas, ator que no geral é bastante limitado), porque cabe a ele enformar as questões morais de que o protagonista se esquiva.

Nota do Crítico
Regular