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Crítica

X - A Marca da Morte ataca e abraça a cólera do fundamentalismo

Novo filme de horror de Ti West flerta com a paródia e opera na energia de crise

11.08.2022, às 13H06.
Atualizada em 11.08.2022, ÀS 13H20

Seja no horror de demônio, no found footage ou no faroeste, o diretor Ti West sempre acredita nas convenções dos gêneros com que trabalha, por mais baratos que eles sejam. O grande valor do seu cinema, consistente filme após filme, e que o difere de muitos nomes da sua geração, é essa ausência de cinismo. Mesmo quando adere à metalinguagem (The Innkeepers, The Roost, The Sacrament), West o faz não porque desconfia da “pureza” desses subgêneros, mas justamente para jogar uma luz reveladora e reparadora sobre suas convenções.

X - A Marca da Morte (2022) começa com uma variação, porque se aproxima da paródia. Em 1979, seis jovens a bordo de uma van viajam até uma fazenda no Texas para filmar por lá um pornô rural, o que acaba afetando a rotina de um casal de idosos, os donos da fazenda. Antes de atender a sangrenta catarse do filme-de-maníaco na sua metade final, X se organiza como paródia porque emula a linguagem dos sexploitations setentistas; sua metalinguagem joga luz sobre as convenções equivalentes do porn e do slasher de forma irônica.

Essa operação paródica parece caber muito bem num filme de Eli Roth (que havia produzido The Sacrament para Ti West em 2013) mas não é exatamente o terreno de West, que aqui encampa essa ideia talvez a título de desafio: deixar um pouco os horrores de época mais reverentes e sondar um cinema mais popularesco. Dos swipes laterais à trilha sonora tarantinesca, X forra a sua cama com pastiche; o ator que faz o pastor na TV parece um sósia de Bill O’Reilly e West encontrou no ator Martin Henderson um genérico de Matthew McConaughey de baixo orçamento.

Isso inclui, por extensão, o pastiche do gore, em imagens como a vaca mutilada na rodovia, que fica tombada com o olhar e a língua voltados à câmera. É possível argumentar, com razoável serenidade, que o pastiche sempre fez parte das convenções do cinema de horror, e nesse sentido Ti West estaria apenas trilhando o mesmo caminho aberto por Wes Craven com O Novo Pesadelo (1994) e Pânico (1996) para revelar suas próprias entranhas. No mais, realmente não se pode esperar pudores de um filme como X, cujo primeiro plano evoca John Ford com o enquadramento cortado da soleira da porta. O mais sagrado e o mais profano.

O que é possível construir de verdadeiro a partir dessa constatação da vulgaridade? Essa é a pergunta que X coloca a si mesmo, uma pergunta que ademais poderia caber em qualquer discussão sobre arte e representação. A resposta que o filme encontra passa por destruir tudo primeiro; a montagem paralela em momentos como a cena da limonada (as expectativas do gozo e do susto se equivalem) esvazia a especificidade dos gestos e das ações. West flerta com o cinismo ao tratar o cinema de gênero não como um prazer inconfesso, com códigos particulares, mas como um mundo maquinal onde tudo se reduz a provocar no espectador reações muito bem cronometradas. 

Não é de espantar que a segunda metade de X transcorra de forma tão colérica, porque à brutalidade usual dos seus filmes de horror Ti West está adicionando agora uma boa dose de niilismo. O resultado pulsa com uma energia criativa muito específica, porque West cada vez mais encena a violência de forma muito elegante e clara, por vezes frontal e à altura do olhar, em planos que às vezes duram um ou dois segundos a mais, para que ela assente e possamos sentir seu peso. (Nessas horas, West se afasta de Eli Roth e se aproxima de S. Craig Zahler, outro cineasta da brutalidade “ponderada”.)

Ao mesmo tempo, é uma energia de crise, dado que o solo arrasado de X talvez só permita na segunda metade a válvula de escape da automutilação, num filme que revelou a feiúra do seu funcionamento e agora lida com o reflexo no espelho. Essa ideia de iluminar as convenções do gênero não como uma coisa redentora mas como uma Caixa de Pandora maldita se confunde no filme com as vozes e imagens do fundamentalismo religioso, cujo regime de penitência então se incorpora ao flagelo filmado.

A imagem de Mia Goth diante do crucifixo pendurado no retrovisor faz uma sutil separação: a lente grande-angular afasta a atriz do objeto, que então balança diante dela mais como um pensamento fugidio do que como um espectro que a assombra. Ainda assim, X pega emprestado do pastor da TV a estratégia da cólera e da terra arrasada, e na falta de um propósito maior seu cinema de gênero desvelado opta por fim pela profecia de morte.

Nota do Crítico
Bom