Embora diga em entrevistas que não se deve esperar de Mãe Só Há Uma (2016) uma repetição do filme que a tornou conhecida no circuito internacional, Que Horas Ela Volta? (2015), a roteirista e diretora Anna Muylaert refaz no seu novo longa-metragem a mesma aposta no atrito de classes, a título de provocação, que gerou tanta comoção com o público no ano passado. É um atrito, ademais, que hoje permeia todo tipo de discussão na sociedade brasileira e nas polarizações que têm se espalhado pelo mundo ocidental em tempos de Brexit e Donald Trump.
A trama se inspira livremente no Caso Pedrinho, ocorrido em 1986, quando um bebê roubado da maternidade foi criado por outra família até sua adolescência. No filme, Pierre (Naomi Nero) é um jovem belo de perfil andrógino que gosta de meninos e de meninas. Em casa, ele se veste de mulher escondido no banheiro, mas quando está entre outros adolescentes não se intimida a demonstrar suas preferências. Quando sua mãe vai presa por tê-lo sequestrado, Pierre então se muda para a casa de classe média alta de sua família biológica, e a inadequação passa a se tornar um problema.
Muylaert, diretora que nas suas comédias de costumes sempre teve uma tendência a caricaturizar tipos urbanos e de classe média, tem a sensibilidade de não vilanizar um dos lados em Mãe Só Há Uma. Se os pais biológicos de Pierre parecem intransigentes nas escolhas que fazem para o filho - a cineasta diz que a nossa classe alta tende a ser mais conservadora, uma afirmação que não é tão simples de fazer mas que está inscrita no filme dessa forma - é porque, instintivamente, precisam "tirá-lo" da mãe anterior e então tornar Pierre "seu". A questão da sexualidade do menino traz consigo essas outras cargas, de uma vida passada, e o filme consegue trabalhar com elas de forma concisa sem ser literal demais ou superficial.
Ainda assim, o motor do filme é o atrito de classes. A questão sexual fica condicionada a ela a partir da metade do filme. Os momentos mais fortes de Mãe Só Há Uma se parecem com os pontos fortes também de Que Horas Ela Volta?: o mal estar de dividir um espaço privado cheio de privilégios, de onde surge um jogo de poder que já está entranhado em nós, e que só enxergamos quando espelhado na tela. É a cena do portão do condomínio ou a do recreio do "novo" irmão de Pierre, por exemplo, imagens mais fortes de um filme que está em busca de uma liberdade no convívio que desfaça esses nós que nos engasgam.