Zoë Kravitz em cena de Kimi: Alguém Está Escutando (Reprodução)

Filmes

Crítica

Com tons de Hitchcock, thriller tecnológico Kimi é o melhor Soderbergh em anos

Em menos de 1h30, diretor comunica paranoia e impotência contemporâneas - mas sem perder a ternura

15.02.2022, às 16H07.
Atualizada em 28.02.2024, ÀS 00H47

A orquestra dissonante do compositor Cliff Martinez, soando altíssima por cima dos créditos em letras serifadas gigantescas na tela, não engana: Kimi: Alguém Está Escutando quer se lembrar (e, se possível, te lembrar) de uma outra era dos thrillers hollywoodianos. O diretor Steven Soderbergh, cinéfilo consumado, sabe muito bem o que está fazendo quando constrói a primeira metade do seu suspense tecnológico como um Janela Indiscreta para o mundo contemporâneo - mas não da forma vulgar como Paranoia fez, lá em 2007, ou da forma degradante como fez A Mulher na Janela, no ano passado. A “homenagem” de Soderbergh a Alfred Hitchcock é ao mesmo tempo mais reverencial e muito mais transformadora.

Em Kimi, nossa protagonista é Angela Childs (Zoë Kravitz), uma jovem que trabalha escutando áudios coletados da tal Kimi, uma assistente digital à la Alexa, para resolver problemas de comunicação entre o dispositivo e os clientes e melhorar o serviço. Certo dia, ela ouve uma gravação que parece registrar o abuso sexual e subsequente assassinato de uma mulher. Quando Angela busca seguir o procedimento recomendado para enviar a gravação para as autoridades, no entanto, ela entra em rota de colisão com forças corporativas que querem proteger o valor de mercado do produto (e, possivelmente, alguns segredos mais sórdidos de suas vidas pessoais).

O roteiro do veterano David Koepp (Jurassic Park, Missão: Impossível, Homem-Aranha) não é predicado no mistério, em uma grande revelação no terceiro ato que muda totalmente a nossa visão da história a que assistimos até aqui. As forças contra as quais Angela se coloca ficam progressivamente claras durante o filme, com Koepp injetando algo de humor ácido na forma como abusa de clichês da paranoia tecnológica contemporânea (o hacker russo que vive no apartamento da mãe, o assistente digital que te grava 24h por dia, os termos e condições de aplicativos que ninguém lê) e mostra por que eles não são tão paranóicos assim.

Dessa forma, o clímax de Kimi é muito mais sobre o confronto físico entre nossa heroína e seus algozes do que sobre a revelação de quem eles são, ou do que estão tentando fazer. Koepp costura habilmente a sua sátira tecnológica astuta com a construção de uma personagem principal sólida e representativa, cujos traumas e reações a eles dizem muito sobre uma geração para a qual os dois anos enclausurados de pandemia só fizeram dificultar uma relação já complicada com a realidade, com as falhas irreparáveis que o sistema apresenta, e diante das quais o indivíduo se sente impotente.

Kimi propõe, como Janela Indiscreta propunha de sua própria forma, que a fuga da realidade não é uma opção saudável, e que a conciliação entre o que conseguimos ver de dentro da nossa clausura e o que realmente acontece lá fora é necessária, ainda que frequentemente violenta. Essa proposta se encontra com a contemporaneidade, no entanto, ao emaranhar nossa protagonista não em um conflito criminal simples da sua vizinhança, mas em todo um complexo capitalista de favores, segredos e violências sancionadas e pagas pelo cartão corporativo.

Angela não pode mudar tudo isso, reconhece Koepp, não importa quanta garra e energia a excelente Zoë Kravitz coloque na construção da personagem. Enquanto Soderbergh usa truques de câmera e sonoplastia com a maestria de sempre, nos colocando dentro do sufocamento agorafóbico da protagonista, Kimi se contenta em mostrar como essa mulher é capaz de recuperar a agência, e até alguma joie de vivre, dentro de um mundo determinado a esmagá-la como a engrenagem defeituosa de uma máquina bem azeitada.

Isso é mais do que esperança o suficiente para o espectador contemporâneo se pendurar nas rápidas e tensas 1h29 do filme. Soderbergh raramente foi tão esparso, tão econômico e tão brilhante quanto é aqui.

Nota do Crítico
Ótimo