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Crítica

Jogador Nº 1 | Crítica

A volta do Steven Spielberg moleque

19.03.2018, às 17H30.
Atualizada em 24.03.2018, ÀS 00H01

Ninguém melhor que Steven Spielberg para levar às telas a adaptação de Jogador Nº 1 de Ernest Cline. O cineasta, afinal, é a maior influência (o maior responsável, na verdade) por tudo aquilo que inspirou o autor do livro a criar sua distópica obra devota aos anos 1980. Mas não é o Spielberg "adulto", o histórico e dramático, que vemos aqui no comando de Jogador Nº 1, mas o cineasta moleque, aquele de Tubarão, E.T., Contatos Imediatos e Indiana Jones... o que torna a experiência ainda melhor.

Spielberg não apenas entende o milhar de referências do livro, mas ajudou a criá-las direta ou indiretamente - assim como a linguagem em que Cline se apoia em seu romance. O cineasta era sinônimo de aventura infanto-juvenil (juntamente com George Lucas, Robert Zemeckis, Richard Donner e tantos outros que transformaram o mundo e a cultura pop quatro décadas atrás) e aqui ele se recorda disso. O mestre retorna a sua melhor forma, homenageando essa época tão importante, em que os recém-empoderados diretores - que nos anos 70 passaram de coadjuvantes dos produtores a verdadeiros chefes criativos -, ganharam o direito de sonhar mais alto, com a indústria abrindo seus cofres para a fantasia e ficção científica, dando vida a imagens até então apenas registradas nas páginas das histórias em quadrinhos.

Com tal pedigree, Jogador Nº 1 é muito mais do que a habitual e cansada colagem de referências pop que temos aos montes hoje. A nostalgia é uma desculpa, não um objetivo. É no mundo criado (ou seria cocriado?) por Cline que Spielberg encontra a oportunidade para revisitar a inocência do passado. Até em estrutura o filme é um grande retorno aos clássicos oitentistas - e o final igualmente simples e genial é prova mais que perfeita disso.

Mas Jogador Nº 1 também é a forma que o cineasta encontrou para se atualizar. Ao ampliar as referências do filme ele mostra que não apenas entende as preferências de uma nova geração como também seu comportamento. O roteiro de Zak Penn e do próprio Ernest Cline é repleto de momentos sutis sobre quem somos hoje - sobre a sociedade online, conectada e ao mesmo tempo desligada da realidade.

No filme, como no livro, o ano é 2045. Nele, sobreviventes do período mais sombrio da humanidade precisam sobreviver em meio ao desemprego e a fome. Nessa realidade vive Wade Watts, um garoto pobre e órfão de 17 anos que, como escapismo, faz o mesmo que tantos outros milhões como ele: passa horas e horas conectado ao OASIS: um mundo online em que a realidade virtual turva os sentidos e coloca na busca por itens e moedas a satisfação que o corpo costumava encontrar de outras maneiras décadas atrás.

Ty Sheridan faz um bom Wade Watts em sua jornada para encontrar as três pistas que o falecido criador do sistema, James Halliday (um caricato Mark Rylance), deixou para o mundo. Ao vencedor, o controle sobre o OASIS - algo que move o industrialista Nolan Sorrento (Ben Mendelsohn, em papel que já virou recorrente para ele).

Há um maior equilíbrio na adaptação entre os mundos real e virtual, aproveitando os atores - que no OASIS encarnam avatares digitais. Há menos desafios e subtramas também, como esperado, mas o resultado, sob o comando de Spielberg, é muito bem amarrado. Cada referência tem um sentido e a qualidade do mundo virtual é estarrecedora, algo surpreendente em tempos em que basicamente todos os blockbusters do cinema contêm cenas quase que totalmente digitais. O OASIS é tão perfeito que em determinado momento, quando surge um ator em cena, há uma inversão no chamado "vale da estranheza". O humano parece irreal perante o digital. Spielberg mergulha tão fundo no mundo de Jogador Nº 1 que os limites se tornam borrados. Passado, presente, nostalgia, realidade, digital e orgânico fundem-se em um espetáculo visual digno de seus marcos passados. O ciclo ganha um reboot e - felizmente - o mestre está com o dedo no botão.

Nota do Crítico
Ótimo