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Crítica

Tolerância Zero | Crítica

<i>Tolerância zero</i>

MH
05.06.2003, às 00H00.
Atualizada em 06.11.2016, ÀS 13H04

Tolerância zero
The believer - EUA, 2001
98min.
- Drama

Direção: Henry Bean
Roteiro: Henry Bean, Mark Jacobson

Elenco:
Ryan Gosling, Summer Phoenix, Theresa Russell, Billy Zane, A.D. Miles, Joshua Harto, Glenn Fitzgerald

A sequência inicial de Tolerância Zero (The Believer, 2001) sugere, como muitos filmes, mais um retrato violento de jovens neonazistas. Daniel Balint (Ryan Gosling, de Cálculo Mortal) persegue um estudante judeu dentro de um vagão de metrô de Nova York. Ao sair, o agride na rua com chutes e ofensas. Até que Daniel grita no ouvido do judeu: Vamos, reaja! Me bata na cara!. Diante da imobilidade da vítima, Daniel escarra e foge.

O visual é padrão. Daniel se exercita em casa, raspa o cabelo, usa coturnos, camisetas com suástica e bottons com emblema do exército SS. Mas ao contrário da ignorância que impera entre os seus pares, o seu conhecimento não se resume a Hitler ou Goebbels. O seu ídolo é Adolf Eichmann (1906-1962), chefe de segurança interna do III Reich e profundo estudioso da Torá, o livro sagrado dos judeus, e do idioma hebraico. Daniel diz aos outros neonazis que é indispensável conhecer o inimigo, como fazia Eichmann. Por isso ele próprio conhece tanto dos costumes judaicos, justifica-se.

Na verdade, o neonazista Daniel tem o sangue e a educação dos judeus ortodoxos. E o diferencial de Tolerância Zero começa aí.

Apanhar até aprender

Aos poucos, em forma de flashback, o espectador conhece a adolescência de Daniel na yeshiva, escola para garotos onde se estuda o Talmude, a lei de Moisés. Aos 13, 14 anos, Daniel vive em discussões com o seu professor. A parábola de Abraão deixa o garoto especialmente encolerizado. Ele pergunta: Como pode Deus ser tão mesquinho diante de um pai e pedir irracional devoção? E como pode ser um seguidor tão submisso, sem opções senão deixar sua terra, seu povo e assassinar o próprio filho? Onde está o livre-arbítrio?. O professor tenta argumentar: Deus abençoou Abraão e sacrificou-se um animal; Isaac não morreu. Mas essa não era a resposta que Daniel procurava.

De volta à narrativa tradicional, entendemos que aquelas questões se agravaram na mente de Daniel. Articulado, inteligente, ele baseia o seu discurso nessa fraqueza dos judeus: um povo que crê piamente nas regras divinas, que sofre há milênios, nunca se fortalecerá. Atravessou o Holocausto e não soube se defender. Os isralenses fazem jus à herança e defendem a sua terra. Já os demais devem apanhar, para um dia aprender. Polêmico? Pois o poço de contradições se aprofunda, uma vez que ele ainda segue muitas das tradições religiosas. Daniel odeia os dogmas da Torá, mas a respeita.

A cena em que ele é entrevistado por um jornalista é emblemática. O neonazista fala de raças, relaciona com desenvoltura a ganância dos judeus com a perversão sexual, mas fica transtornado quando o entrevistador revela saber o seu passado. Armado, Daniel profere: Se você publicar isso, eu me mato. Ou seja, os conflitos morais dentro de sua cabeça são tão grandes que desaparece a lógica - e a ameaça de praxe se inverte. Se você publicar isso, EU ME MATO.

Resultado abalador

O filme se baseia livremente numa história real. Em 1965, Daniel Burros, membro do movimento neonazista norte-americano, foi preso numa reunião da KKK em um restaurante no Bronx novaiorquino. Através de um rabino da região, o New York Times soube da origem judaica do militante. Publicado o fato no jornal, Burros se suicidou. Em Tolerância Zero, o diretor Henry Bean não dá uma saída tão simplista à vida de Daniel. Na verdade, a procura do protagonista pela racionalidade se embola com outros desdobramentos: políticos, amorosos, econômicos.

O resultado nunca é menos do que atordoante. Perto dele, A Outra história americana (American history X, de Tony Kaye, 1998) é uma novela mexicana rasa e melosa. Mas o judeu Bean teve dificuldades em lançar a bomba - sua estréia na direção, depois de longa carreira como roteirista. Não conseguiu distribuí-lo comercialmente nos EUA. A única vitória veio no Festival de Sundance, onde o filme levou o Grande Prêmio do Júri. Merecidíssimo, diga-se. Bean não se deixa intimidar, arrisca algum virtuosismo técnico, e Ryan Gosling consegue exprimir, com uma interpretação enérgica, todo o ódio que o personagem sente por sua condição.

Não se deixe convencer pelo fraco, vago título em português do filme - mesmo porque Tolerância Zero é tolerante em relação à figura de Daniel. Ele não é visto como um anti-Cristo e a sua conduta não é condenada, mas vista imparcialmente, de forma crítica. O filme toca em temas arriscadíssimos, mas jamais levianamente. Aliás, a sequência final é de tal modo corrosiva em relação à crença cega, e tão bem filmada, que abala até o mais convencido dos agnósticos. E fica explicado o verdadeiro significado do começo do filme: Daniel agride, principalmente, a si mesmo.