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Dia 4 de janeiro, primeiro domingo de 2004, feira de antiguidades de San Telmo, bairro no Centro de Buenos Aires. Altíssima concentração de turistas: motivo suficiente para que se instale um estreito tablado de tango na rua. Ao som de uma fita cassete, uma mulher muito maquiada e um senhor com jeito de Casanova arriscam passos e rodopios econômicos em troca de alguns pesos, moeda local. Falta meia hora para o meio-dia.
De repente, chega um grupo com bacias e latões de tinta em punho. Posicionado a pouco mais de três metros do casal, o panelaço premeditado e eficiente pede maiores salários, mais respeito, mais dignidade. E o barulho do metal acaba abafando o tango, enquanto o senhor com jeito de Casanova, única pessoa no local a ignorar a intromissão, segue impassível no bailado.
Se o tango já era a arte do lamento e da romântica melancolia, a situação atual da Argentina, o vale-tudo pelo sustento, torna a dança ainda mais triste. Mas Robert Duvall foi seduzido por outro tango, o clássico, sensual e pomposamente imodesto. O tango e o assassino (Assassination tango, 2002), thriller policial em que atua e dirige, não apenas homenageia a dança pura como também exercita um estilo de filmagem que anda em desuso, envolvente e minucioso, sem a contaminação dos cortes frenéticos e das reviravoltas banais.
É um tipo de cinema preservado com cuidado, coisa de purista e abnegado, como a dança que sobrevive nas tanguerias, os salões escondidos nas antigas construções de Buenos Aires.
Austero e classudo
Duvall vive John J., um matador nova-iorquino que esconde a profissão da atual namorada e da enteada, menina por quem tem verdadeiro apego paternal. John J. também ama a dança. Frequenta sempre o salão de Frankie (Frank Gio), o seu "empresário", que repassa ao matador uma nova missão: alvejar mortalmente um ex-general argentino. "Coisa de três dias", diz Frank. Mas, ao desembarcar em Buenos Aires, John J. é avisado de uma mudança de planos. Precisará ficar por duas semanas para que o assassinato aconteça sem erros. Puto da vida com o imprevisto, John J. entra por acaso num salão de tango - e a sua vida se transforma.
Não se trata do chamado filme de turismo. O tango e o assassino tem um roteiro muito bem pensado, passeia pelos atrativos portenhos - o Caminito de La Boca, o Zoológico, o cemitério da Recoleta - sem parecer publicitário demais. Além do mais, a sua maior qualidade é a construção do suspense, que remete aos grandes exemplares do gênero dos anos 70, como Operação França (The French Connection, de William Friedkin, 1971) e Chinatown (de Roman Polanski, 1974). Vale a pena observar como Duvall, um ator invariavelmente sensacional, constrói o lado humano, inofensivo, do seu matador implacável.
Mas há um problema, um pouco maior do que seria aceitável. Ao dividir a narrativa em duas linhas de condução - os preparativos do assassinato e o contato com o tango -, o filme não consegue conciliá-las. O desequilíbrio é evidente na porção final da projeção: à medida que a tensão do crime aumenta, o Duvall que se deslumbra com a dança parece, cada vez mais, com um documentarista que apenas assiste aos depoimentos dos célebres dançarinos locais.
Não chega a ser um anticlímax, nem a vitimar a película. Ao encerramento, fica a lembrança de uma história muito bem contada, num cenário propício às boas imagens. Um filme austero e classudo, bem à maneira de Duvall, bem à maneira do tango que persiste no imaginário portenho.