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Meninos de Deus (The dangerous lives of altar boys, de Peter Care, 2002) é um daqueles casos em que o título nacional ajuda a afundar a carreira do filme nos nossos cinemas. Ao contrário do que se possa imaginar, a história não é sobre abuso de crianças por padres, nem mesmo um filme religioso. O longa centra-se nos riscos que os adolescentes sofrem pela falta de habilidade de professores e pais em compreendê-los.
Tim e Francis são dois adolescentes que estudam numa escola católica. Eles vivem em rebeldia contra todos os conceitos impostos pelos professores. Tim vem de um lar desfeito e segue uma cartilha de aventuras perigosas. É a sua maneira de chamar a atenção. Francis é seu fiel escudeiro e um ótimo quadrinhista. Em seus desenhos ele cria um mundo de imaginação onde ele, Tim e mais dois amigos fazem parte de um grupo de super-heróis. Neste mundo de imaginação eles enfrentam os vilões baseados na freira Assumpta.
Acompanhamos as peripécias dos quatro amigos em seu dia-a-dia escolar, em casa e em seus passeios. Ao começar a namorar Margie, ela acaba virando também um personagem das histórias de Francis. Tim, sentindo-se preterido, acaba apelando a idéias ainda mais arriscadas que o normal.
O elenco do filme, basicamente formado por adolescentes, está perfeito. Kieran Culkin e Emile Hirsch, respectivamente Tim e Francis, dão muita credibilidade a seus papéis. Jena Malone, que interpreta Margie, parece uma atriz veterana, devido ao modo seguro com que faz cenas tão fortes. Jodie Foster, co-produtora, e Vincent DOnofrio completam o elenco nos papéis da freira Assumpta e do padre Casey, que comandam a escola.
A grande sacada da produção foi a chamar o premiado criador do personagem Spawn, para fazer os desenhos. Todd McFarlane é bastante conhecido pelos universos demoníacos em que vivem suas criações e faz aqui uma história paralela que segue justamente os passos de Tim e Francis. Chega a ser uma ironia, pois na imaginação dos adolescentes eles são os heróis e os membros da igreja representam o mal.
O roteiro, baseado no livro do falecido Chris Fuhrman, não cai nas habituais armadilhas de filmes que envolvem autoridades religiosas e adolescentes. Freiras e padres não são estereotipados e conseguimos entender suas motivações. Eles não são cruéis. O que acontece é que eles não usam o mesmo vocabulário dos jovems, pois acreditam que a melhor maneira de ajudá-los é repreendendo suas identidades, o que muitas vezes acaba tendo o resultado inverso.
O enredo tem várias metáforas visuais. Como na primeira cena do filme, quando Tim e Francis derrubam um poste em formato de cruz. Há ainda diversas associações à obra de William Blake, o visionário poeta inglês, místico e pintor, que lutou contra aqueles que viam o mundo numa perspectiva limitada. Seu livro The Marriage of Heaven and Hell é fonte de inspiração de Tim e aparece algumas vezes durante a projeção. Blake acreditava que se Deus era o observador inativo, o Diabo significava envolvimento, desejo, curiosidade e audácia. Essas características aparecem equilibradamente nos personagens de Tim, Francis e Margie. Encontramos ainda relação entre as ações de Francis com Deus e o Diabo descritos por Blake. Percebemos o divino, quando Francis é um simples observador, pensando e desenhando Assumpta, e o profano - ao aventurar-se primeiro com Tim e depois com Margie.
Meninos de Deus é uma grata surpresa nos já badalados filmes sobre adolescentes. Confirma que a imaginação é a única saída para o crescimento interior.