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Por mais viciado que seja em terapias e consultórios, nada ajuda mais Woody Allen a exteriorizar os seus dramas do que o cinema. Na tela, o judeu nova-iorquino neurótico e prolixo que trocou a esposa pela coreana adotada tem espaço para o auto-exame e para fazer piada com as suas próprias idiossincrasias. Não é diferente com Igual a tudo na vida (Anything Else, 2003).
Como em Celebridades (Celebrity, 1998), ele arranja um ator para personificar os seus tiques. Aqui, em vez de Kenneth Branagh, está Jason Biggs, astro da série American Pie. No papel do comediante Jerry Falk - sujeito que não consegue nem se desapaixonar da melindrosa Amanda (Christina Ricci), nem largar o empresário bufão Harvey (Danny DeVito) -, Biggs trava solilóquios com a câmera como Allen, se mexe vacilante e aponta direções como Allen, teme o fracasso e sofre de amor como Allen.
A diferença é que o cineasta/ator está em cena para aconselhá-lo. O diretor interpreta David Dobel, um artista, escritor e pensador que escolhe Falk para ser seu protegido. Em passeios vespertinos no Central Park, os dois discutem as artes, o cotidiano, o anti-semitismo, o terrorismo e também as mazelas que atormentam o jovem. São decisões difíceis, caminhos que se devem tomar, mas nada que seja impossível, apenas "igual a tudo na vida", diz Dobel.
Vale reparar que Biggs possui timing de humor e potencial diante de um material decente. Vale acompanhar o domínio que Christina Ricci exerce não apenas sobre Falk, mas sobre a cena toda. É gratificante perceber que Allen reencontra o equilíbrio entre comédia física e cerebral, como na ótima sequência - claramente inspirada na anarquia dos Irmãos Marx - em que Dobel põe o apartamento de Falk no caos.
Enfim, essa superfície da trama, a comédia romântica, vale o ingresso. Mas todo bom filme tem muito mais a dizer em suas entrelinhas. E o subtexto de Igual a tudo na vida instiga a especulação.
Em que medida Allen escalou o novato Biggs - e também Jimmy Fallon, revelação do Saturday Night Live, numa pontinha - não apenas para ajudá-lo a contar a história, mas também para pajeá-lo na carreira e na escola da comédia, como uma espécie de "transferência de cinturão do campeão"? Seria tudo uma brincadeira do tipo "aprendam, moleques, como eu ainda sou o maioral por aqui"? Ou então, o fato de Dobel ser um nova-iorquino belicista, adepto da autodefesa nestes tempos de Terror, seria mera ironia de Allen, ou a oportunidade de um desabafo imparcial, já que teoricamente ele transmitiu a sua persona para o personagem de Biggs?
Essas discussões - pertinentes dentro do hábito autobiográfico do diretor/roteirista - podem não levar a nada, mas tornam mais interessante um filme que, em si, é só diversão perecível. Como diria David Dobel após cada ensinamento: "Pense nisso...".