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Em seu novo filme, 25° de uma vida dedicada ao cinema, Júlio Bressane afia a faca e dilacera meticulosamente sua própria cabeça. O cineasta, um dos poucos nomes que assina um cinema experimental no país, faz seu trabalho com a urgência da improvisação. Apesar do planejamento prévio, Bressane gosta de falar que seus filmes nascem e se transformam no vivo momento de sua produção. É ali, no calor do set, que os fantasmas dos filmes - conseqüentemente os fantasmas que habitam a cabeça de seu criador - aparecem e tomam conta do lugar.
Sem maiores introduções, e como numa encruzilhada, Filme de amor pode ser encarado de duas formas iniciais, mas não únicas: uma parábola sobre o sentimento explícito no título e (ou) uma autópsia de toda a obra pregressa de seu dono.
Assim como em todo o cinema de Bressane, e mais escancaradamente neste Filme de amor, a experiência com a película não acaba ali, no momento em que as imagens terminam e os créditos dão um respiro ao espectador. Nada de papinha batida: uma longuíssima e pesada digestão se segue, começando ironicamente no fim de tudo.
Seguindo sua tradição de inspirações literário-filosóficas, desta vez, Bressane se apossa declaradamente do mito grego das Três Graças: três mulheres que representam o amor, a beleza e o prazer - uma delas aqui substituída por um homem. E é aqui que ele fundamenta, em parte, esta produção.
Como num breve prólogo, o primeiro plano retrata com afinco o movimento do mar nas pedras. O enquadramento fechado já é suficiente para causar náuseas: a certo momento, não se sabe mais precisar o tamanho do que se vê - se são ondas batendo em rochedos ou a marola preguiçosa lambendo um pequeno pedaço de chão em pedra. E é ali, no ambiente alienígena da orla, que os personagens se apresentam.
O filme gira em torno de três amigos, moradores banais do subúrbio carioca, que levam uma vida medíocre e desinteressante. Encontramo-nos com eles quando, num fim de semana, um quase irritante movimento de câmera mostra que os três vão se encontrar no quarto-e-sala alugado pelo rapaz.
O encontro começa com sussurros quase inaudíveis entre eles, dando uma falsa idéia da vulgaridade cotidiana que poderia se seguir daí. A impressão é quebrada quando os três começam sua jornada em busca de um intervalo prazeroso dentro de suas vidas estúpidas.
Acompanhando a peregrinação dos personagens, o diretor inicia sua análise das facetas do amor, transformando tudo num espetáculo para os sentidos. O filme enjoa, excita, abusa, assusta, entedia, segue por aí - e é de se imaginar que essa sinestesia seja totalmente proposital.
Filme de amor é também um exagero de simbologias. Da lâmpada cambaleante no canto da cena ao vôo dos personagens, passando por uma tigela de leite e um inusitado ferro de passar roupas transformado numa frigideira, tudo ali tem seu significado particular.
A pornografia, tão cara a Bressane, é ponto presente em todo o filme, provando que nada é mais belo do que o sexo, em todos os sentidos além do banal presente na cabeça de qualquer adolescente. Bressane despedaça o amor no sexo literato, nas celebrações da palavra falada. Há sim também o sexo puro e carnal, a felação nas sombras e a ejaculação explícita na tela. Mas mesmo nessas, a frieza e a ironia com que os personagens tratam torna tudo de um simbolismo ímpar. Nada ali é puro sexo. Nem mesmo a vulva depilada, longamente mostrada em close, é simplesmente uma vulva.
A fragmentação dos papéis ajuda a confundir, para o bem, a cabeça de quem está assistindo. Em teoria, cada personagem representaria um aspecto da mitologia ali aplicada. Mas não demora para que os três aspectos se confundam em cada um - como acontece em qualquer estereótipo da vida real. Em alguns momentos, os personagens mantêm uma distância tão grande entre si, que é difícil absorver o que eles realmente são. Como semideuses neuróticos, cada um tem uma personalidade única a cada cena, que vai e volta e se mistura com outra. A teatralidade aplicada às interpretações dos três atores também poderia atrapalhar a identificação dos personagens. Algumas declamações soam tão literais que destroem a verossimilhança suburbana que num certo momento se esboçou em construir. Mas então já se está tão absorvido na coisa toda que nem é preciso ligar mais pra isso.
Ao final, sem concluir se tudo já foi experimentado ou estudado, é hora de voltar à tona. O império dos prazeres vai para dentro do baú e os três voltam à rotina do começo do filme, encarando a segunda-feira como os três colegas anônimos que trabalham num decadente prédio comercial do Rio de Janeiro. E é assustador pensar como na última cena, que deveria ser a mais banal de todas, Bressane consegue construir o ponto alto.
Ao longo do filme é que se pode perceber a fina reflexão de Bressane sobre sua própria obra. Personagens declamam falas de outros filmes, diálogos estranhos à cena aparecem aqui e ali, vindos também de outros trabalhos. No seu filme mais cru e mais produzido (segundo ele mesmo) Bressane olha para dentro de si mesmo e mostra o que enxerga.
Filme de amor é uma obra multifacetada, como é toda a filmografia do diretor. Quando apresentou seu filme no Festival de Brasília, no ano passado, Bressane pediu: "tenham tolerância". Parte do público vaiou, mas o filme saiu consagrado do festival.
Tolerância é, sim, necessária para enfrentar Filme de amor. Mas a viagem compensa.