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Quando veio a público, em 2001, a notícia causou furor entre os cinéfilos mais entendidos: Abbas Kiarostami, o bamba iraniano, cineasta mais importante da tão falada safra noventista do país, deixa películas de lado e adere ao cinema digital. [Ovações, murmúrios, aplausos] Seria, enfim, mais um apoio de renome à nova tecnologia, na época ainda vacilante entre as cenas tremidas, os planos sem cortes e as cores granuladas em excesso.
Mas a discussão segue esfriando com o tempo. Isoladamente, obras como Arca Russa (Russki Kovtcheg, 2002), de Aleksandr Sokurov, fazem excelente uso do formato, mas nada que provoque uma revolução na indústria. E agora que Dez (10), de 2002, o tão falado filme de Kiarostami, estréia no circuito nacional, fica claro que o uso de câmeras digitais, de baixo custo, ainda tem importância muito mais econômica do que propriamente artística.
Claro, o gênio iraniano sabe aproveitar como poucos cada minuto do seu material - captado de maneira radicalmente minimalista, através de câmeras instaladas no painel de um automóvel. Mas o que prevalece em Dez, assim como em Gosto de cereja (Tam e guilass, 1997) ou em O Vento nos levará (Bad Ma Ra Khahad Bord, 1999), dois de seus filmes mais conhecidos, é o conteúdo, o retrato minucioso e universalista das regras sociais e do povo do Irã.
Administrado desde 1997 pelo regime democrático de Mohammad Khatami, reformista opositor dos aiatolás conservadores, o Irã atravessa hoje uma mudança tímida, mas inédita - a emancipação feminina. Mulheres deixam de cobrir o corpo inteiro com a burka e já exibem rostos maquiados com orgulho, questionam a hierarquia familiar e até trabalham fora de casa e investem em suas carreiras. Mais do que um tema sugestivo, a pauta chega aos cinemas com a urgência da História.
Pois a verve instigante de Kiarostami aflora logo no doloroso diálogo inicial - a primeira de dez conversas, divididas por episódios numerados. Por cerca de quinze, vinte minutos, a câmera se concentra apenas em um pequeno garoto sentado no banco do passageiro, Amin (Amin Maher), filho amargo da motorista do carro. Não se conhece o rosto da mulher, escuta-se apenas a sua voz - mas o público logo se identifica com o seu drama. Amin não aceita o divórcio dos pais nem o novo casamento da mãe e se debate furiosamente contra a determinação dela. A mulher se sustenta com o seu próprio trabalho. Carente de "atenção", Amin decide morar com o pai, gosta de visitar a avó, mas diz odiar a mãe.
Ao fim desse primeiro episódio, conhecemos o rosto da protagonista (Mania Akbari), mulher de feições marcantes - que não hesita, inclusive, em buzinar ou xingar os barbeiros da capital Teerã. Os nove diálogos seguintes tratam de definir melhor a rotina dela dentro do carro, com os seus familiares, amigos e eventuais caronas. Surgem interlocutores como uma amiga recém-abandonada pelo namorado, uma idosa beata que reza três vezes ao dia, uma prostituta eloqüente.
Com uma condução límpida, sem floreios, quase ausente, Kiarostami consegue, como todo bom contador de histórias, narrar de maneira espantosamente fluente e cativante, sem parecer esnobe ou hermético. E consegue aproximar o espectador da realidade mostrada na tela, por mais distante que pareça a cultura islâmica. Assim, no final, fica transparente que a libertação das mulheres do país é um feliz percurso sem volta. Mas fica claro também que esse caminho ainda reserva resistentes preconceitos - como mostra a aparição derradeira do intolerante Amin, diálogo breve mas atordoante em sua simplicidade seca, que evidencia o talento acima de fórmulas do diretor.