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Deus é Brasileiro | Crítica

Épico sertanejo com o escracho religioso

30.01.2003, às 00H00.
Atualizada em 13.11.2016, ÀS 08H05

Carlos José Fontes Diegues nasceu em 1940, em Maceió. Ainda era pequeno quando se mudou para o Rio de Janeiro e se interessou pelo cinema. Desde 1959 já produzia curtas-metragens. Mas foi em 1962, aos 22 anos, que iniciou o seu primeiro longa, Ganga Zumba. Graças ao momento histórico e geográfico, e à sua ideologia, Cacá Diegues teve a oportunidade de participar do movimento do Cinema Novo. Em meio à repressão como cotidiano e ao experimentalismo como forma de expressão, desenvolveu uma obra frequentemente política, como em Os Herdeiros (1969) e em Bye bye Brasil (1979).

É preciso lembrar as origens do diretor antes de se debruçar sobre a sua produção atual. No livro de depoimentos O Cinema da Retomada, organizado por Lúcia Nagib, Diegues defende que mantém as suas posições políticas, mas cada vez mais enxerga o cinema como uma manifestação prioritariamente artística. A respeito do ponto alto de sua carreira, nos anos 60 e em meados dos 70, diz: "Meu cinema não é tributário nem do passado nem do futuro, não estou fazendo filmes para serem entendidos depois de mim, nem como nostalgia do passado, faço filmes para o presente".

Diante de tal explicação, fica mais fácil entender o novo longa do diretor, Deus é Brasileiro (2002), uma comédia bem próxima da temática folclórica e da abordagem popularesca que marcam Diegues desde Tieta (1996) e Orfeu (1998). Baseado no conto O Santo Que Não Acreditava em Deus, publicado por João Ubaldo Ribeiro em 1991, o filme traz Antônio Fagundes no papel do Todo-Poderoso, numa viagem providencial pelo Nordeste do país. Ao lado do malandro Taoca (Wagner Moura), o seu guia no Agreste, Deus procura um certo Quinca das Mulas (Bruce Gomlevsky), homem que seria elevado à condição de Santo - e cuidaria das obrigações divinas enquanto Ele desfrutaria as suas férias intergalácticas.

Escolhido para figurar na coletânea Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, o ótimo texto de Ubaldo trata a figura de Deus com um divertido deboche: impaciente e mal-humorado, Ele xinga Taoca, se nega a realizar milagres e reclama quando os homens, incapazes, jogam todas as suas lamúrias no colo do Criador. A grande fonte da graça do filme, assim, fica por conta da adaptação fiel das tiradas inspiradas do conto. Além disso, as belas locações e as interpretações primorosas de Fagundes e do soteropolitano Moura (jovem revelação do teatro, cada vez mais à vontade no cinema) sustentam a porção "comédia" do filme.

Mas Deus é Brasileiro almeja mais, como numa mistura do clima épico sertanejo de Central do Brasil com o escracho religioso de O Auto da Compadecida. A certa altura, a busca pelo santo adquire um tom de espirituoso road-movie. À medida que os personagens percebem as várias faces da realidade na região, se constrói uma obra mais vigorosa, que expõe os problemas do sertão, ao mesmo tempo que exibe a chegada da modernidade. Em certa vila, os moradores conseguem conversar com os mortos através de um site. Em outra localidade, o grupo Cordel do Fogo Encantado apresenta a sua música regional de vanguarda em uma feirinha. E assim, a rota de descobertas segue com figuras e situações enriquecedoras.

Os problemas da adaptação surgem na conclusão. Diegues cria coadjuvantes, como a revoltada Madalena (Paloma Duarte), afim de estender a história além do original, mas não consegue encontrar um final satisfatório para a tensão entre a moça e Deus, uma relação conflituosa construída ao longo do filme. Após o encontro com Quinca, aquilo que no conto é uma passagem poética, na tela se transforma num desfecho incompleto - não se sabe o que aconteceu com as férias pretendidas por Deus. Se por um lado há um alívio causado pelas boas risadas e instigado pelo retrato do sertão, há também uma leve sensação de desamparo, como se o tradicional final feliz não tivesse sido tão feliz assim.

Nota do Crítico
Bom