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Crítica

Hotel Mekong | Crítica

Sobre palimpsestos e canibais

22.10.2014, às 01H07.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H37

O Rio Mekong, que começa no Tibete e termina no Vietnã depois de um curso de 4 mil quilômetros, tem ciclos violentos de cheias e secas. Nos últimos anos, esse processo se intensificou, e o Mekong transbordou a ponto de desalojar pessoas no Laos e na Tailândia. Muitos culpam o desmatamento e a construção de barragens e hidrelétricas ao longo do curso do rio, na China, no Laos, na Tailândia e no Vietnã.

hotel mekong

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Apichatpong Weerasethakul compartilha dessa opinião, mas suas obras ambientadas no Mekong, como a videoinstalação For Tomorrow For Tonight e o filme feito para a TV francesa Hotel Mekong (Mekong Hotel), não tratam o assunto com panfletarismo. O cineasta sequer faz o mesmo percurso de Em Busca da Vida, o filme do chinês Jia Zhang-ke sobre o que sobrou de uma cidade submersa após a criação da represa Três Gargantas no seu país. Para o tailandês, cujos filmes cheios de espíritos invariavelmente tratam a vida como um acúmulo de ciclos, o Rio Mekong nunca apagará nada no seu vaivém, tudo sempre permanece - nem que seja como assombração.

Com uma hora de duração, Hotel Mekong passa a impressão de ser o filme mais inacabado de Apichatpong, porque, de fato, é um trabalho-em-andamento. Acompanhamos a estadia de alguns hóspedes no tal hotel, que fica à beira do rio. Cenas dos ensaios de um filme que o diretor preparava há anos e nunca realizou, Ecstasy Garden, são aproveitados em meio a esses registros com os hóspedes. É a permanência e a transformação do passado em algo diferente, como a própria cadência do Mekong.

Estabelecido isso, não é de espantar que, de repente, os personagens passam a incorporar espíritos passados e ser possuídos pelo fantasma pob, lendária criatura carnívora de que Apichatpong ouviu falar na juventude. O pob transforma, um a um, os hóspedes em canibais, e logo em seguida nós os vemos de volta ao "normal", conversando sobre arrependimentos ou projeções. Uma neta pede ao espírito de 600 anos de sua avó que descanse: "Nossas memórias são uma só". Já um jovem diz que reencarnará como animal: "Não sei quanto tempo levará até eu ser humano de novo".

Enquanto isso, o próprio Apichatpong grava o músico Chai Bhatana ao violão. A bela música instrumental que ele toca dura o filme todo e, como se fosse um encanto, permite que experimentemos Hotel Mekong como um tranquilo fluxo de consciência. Barulhos de carros e de uma escavadeira ampliando a margem do rio permanecem sempre ao fundo, mas a música toca mais alto. São várias camadas, afinal, que compõem Hotel Mekong, o filme de Apichatpong que mais se aproxima da ideia de palimpsesto (em grego, "riscar de novo"): os papiros e pergaminhos que eram reutilizados antigamente quando se apagavam velhos escritos para dar lugar a novos.

Há uma violência inerente ao palimpsesto, como há também no canibalismo e na engenharia ambiental, mas para Apichatpong essa violência não elimina o ciclo das coisas, embora as transforme. Hotel Mekong não é um filme de arrebatamento como os principais do cineasta - Eternamente Sua, Mal dos Trópicos, Síndromes e um Século e Tio Boonmee - mas inegavelmente nos transporta para um tempo suspenso, quando quatro jet skis descrevendo trajetórias que o rio imediatamente apaga (mas não apaga de verdade) podem gerar um tipo de enlevo ou mesmo de arte.

Nota do Crítico
Bom