Lena Headey e Karen Gillan em cena de Coquetel Explosivo (Reprodução)

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Crítica

Gunpowder Milkshake tem estilo explosivo e retórica discretamente subversiva

Filme se equilibra com firmeza entre adrenalina e sátira amarga dos papéis de gênero

08.11.2021, às 14H06.
Atualizada em 28.02.2024, ÀS 00H47

Há uma divisão de gênero rígida e específica em Coquetel Explosivo (no original, Gunpowder Milkshake), e ignorá-la seria ignorar parte estrutural de sua narrativa. Todas as heroínas do filme de Navot Papushado são mulheres, e todos os vilões são homens - e, como em todo filme de ação, a dinâmica de poder entre heróis e vilões é o que forma o próprio coração da história. Com Coquetel, Papushado e seu corroteirista Ehud Lavski nos mostram quem detém o poder estrutural na sociedade, e nos apresentam uma fantasia subversiva e violenta de como usurpá-lo.

A figura central da trama é Sam (Karen Gillan), que tem trabalhado como assassina de aluguel desde o desaparecimento da mãe, Scarlet (Lena Headey), que exercia a mesma “profissão”. Quando ela mata (meio que por acidente) o filho de um chefão do crime e se desvia de sua missão para resgatar uma garota inocente, a inescrupulosa organização para a qual ela trabalha começa a caçá-la, e ela recorre a velhas amigas da mãe, Madeleine (Carla Gugino), Florence (Michelle Yeoh) e Anna May (Angela Bassett), para ajudá-la.

O confronto dessas cinco mulheres principais com as estruturas masculinas que as controlam, e dentro das quais elas são obrigadas a trabalhar para ganhar a vida ou serem consideradas parte da sociedade, é o material do qual Coquetel Explosivo tira sua ressonância emocional. O filme não funcionaria, ao menos não da mesma forma, se Sam fosse um homem, porque o roteiro deixa claro quem são as pessoas descartáveis e quem são as pessoas insubstituíveis para os homens que estão no poder.

Nessa época em que a tentativa de promoção da igualdade de gênero em Hollywood levou a tramas e escalações “genderblind” (no jargão em inglês, significando que não importa se o personagem é homem ou mulher, ele é escrito e produzido da mesma forma), Coquetel apresenta uma alternativa: um cinema blockbuster em que o gênero é componente essencial de quem os personagens são, justamente porque eles vivem em um mundo rigidamente, amargamente e violentamente dividido em linhas definidas por gênero.

É uma declaração forte para se fazer em um filme de ação, mas Papushado e cia. se dão bem na articulação dessa mensagem, mesmo que a sutileza não seja o forte da equipe - ou, talvez, justamente por isso. Muito mais do que ser feminista, o que denotaria em si um posicionamernto político mais explícito e um fundamento teórico mais robusto, Coquetel é um simples testemunho da misoginia do mundo que cria e no qual foi criado, e uma revolta violenta, de princípios muito mais viscerais do que intelectuais, contra ele.

Não levem toda essa divagação conceitual a mal, no entanto: Coquetel Explosivo também entrega o que promete como espetáculo de ação. Todo cores intensas, câmeras lentas, cenários elaborados e coreografias de luta brutais, ele faz da estetização radical de suas cenas de adrenalina - acompanhadas sempre de uma trilha sonora bombástica - mais um componente da construção de seu mundo severo, decididamente descolado da realidade, mas sempre comentando sobre ela.

Seja na relação entre as protagonistas, tingida tanto de tons românticos quanto de tons fraternais, em uma ambiguidade confortável (Gugino entrega um desempenho especialmente tocante, como costuma fazer); ou na caracterização exagerada dos vilões, incluindo um Paul Giamatti apropriadamente cretino e um Adam Nagaitis iconográfico com seus cabelos longos e sebosos; há muita diversão compactada na 1h54 de Coquetel Explosivo. Ignorar suas entrelinhas sociais fortíssimas, no entanto, seria dar a ele menos crédito do que merece.

Nota do Crítico
Ótimo