Amazon Prime Video/Divulgação

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Crítica

Filmes sobre Caso Richthofen têm boas atuações, mas roteiros ruins

A Menina Que Matou os Pais e O Menino Que Matou Meus Pais falham em justificar existência enquanto retrato histórico, estudo de personagens e reflexão artística; saldo é negativo

23.09.2021, às 13H36.
Atualizada em 23.09.2021, ÀS 14H38

Em 2006, quatro anos depois dos assassinatos de Marísia e Manfred von Richthofen, a ré e filha do casal, Suzane, concedeu entrevista ao Fantástico sobre o crime. Vestida com camiseta da Minnie, pantufas e com uma longa franja cobrindo o rosto, a jovem falou em tom de inocência sobre como teve sua vida destruída pela influência e ganância do ex-namorado, o também réu Daniel Cravinhos, sendo induzida a tomar parte no crime. Antes da gravação da conversa, foi flagrada falando com seu advogado e recebendo uma orientação: "Chora".

A entrevista foi considerada manipulada pela reportagem da Rede Globo, que a colocou no ar em tom de denúncia contra Suzane e o advogado Denivaldo Barni. Meses mais tarde, a Justiça também descartaria a transferência de culpa da assassina: condenaria Suzane, Daniel e Cristian Cravinhos sem distinção pela autoria dos crimes, atribuindo ao ex-casal uma pena de 39 anos de reclusão e seis meses de detenção e ao terceiro réu, que confessou o crime, 38 anos de reclusão e seis meses de detenção.

É estranho, portanto, que A Menina Que Matou os Pais e O Menino Que Matou Meus Pais, filmes nacionais lançados pelo Amazon Prime Video,tenham escolhido resgatar os depoimentos repletos de manipulações de fatos e estratégias de defesa dados por Daniel e Suzane à Justiça como base para suas histórias – e é mais estranho ainda que tenham feito isso em tramas separadas, dificultando ao espectador menos atento que os entenda não como fidedignos e reveladores, mas como retratos de relatos questionáveis, não só defendidos por dois criminosos condenados, mas também descartados pela Lei.

Construídos de forma a se espelharem, A Menina e O Menino partilham da mesma cena de abertura, uma recriação da descoberta dos corpos de Marísia e Manfred pela Polícia Militar de São Paulo, em 2002. Disso, a trama salta para 2006, e acompanhamos o depoimento de Daniel (Leonardo Bittencourt), no primeiro filme, e de Suzane (Carla Diaz), no segundo. A história contada por ambos é estruturalmente a mesma, mas seus papéis no destino trágico são diferentes. Na narrativa dele, ela é a garota rica com traumas que encontrou nele refúgio, usando-o para colocar em prática antigas fantasias fatais. Na dela, ele era o garoto pobre, próximo de uma realidade de crime perigosa, que tornou-se namorado abusivo e a conduziu a matar sua rica família por ganância.

Para o espectador menos informado sobre o caso, ser conduzido inicialmente por Daniel é descobrir uma verdade aterradora sobre o passado de Suzane: vítima de abusos e de violência por parte da família, é mais fácil compreender as motivações da jovem em participar (e, para muitos especialistas, mentorar) a morte dos próprios pais. Assistir à versão da garota em sequência, entretanto, apresenta outra verdade: a de Daniel como real manipulador, e dos pais de Suzane como rigorosos, mas absolutamente inocentes. A síntese dessa contraposição, feita possível só depois de quase 3h de filmes, é um sentimento de insatisfação. Para que resgatar e dramatizar elementos descartados pela Justiça em um caso já resolvido, se não irá se propor nada além de representá-los? Em dois filmes, não há resposta.

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Segundo os roteiristas Ilana Casoy e Raphael Montes, a ideia de contar a história em dois filmes veio da vontade de se ater aos documentos do caso, fugindo de polêmicas como a que recai sobre Dom, série biográfica de Pedro Dom que também foi lançada pelo Prime Video. A produção foi acusada por mãe e irmã do criminoso fluminense de manipular fatos e forjar informações apenas por efeito dramático. De fato, o problema não se repete em A Menina e em O Menino, mas algo quase tão danoso acontece: ao usar como base apenas os relatos de Daniel e Suzane, os filmes não apresentam versões que complementaram e elucidaram o caso, frente à Justiça. O depoimento do irmão Andreas von Richthofen, que desmontou a denúncia de abusos manifesta pelos Cravinhos contra o casal de vítimas, por exemplo, seria chave para evitar desinformar o espectador mais preguiçoso, e até para dar peso à trama com a inclusão de uma verdade chancelada pela Lei. Ao não fabricar informações, mas apresentar as fabricações de Suzane e Daniel em uma narrativa que não favorece desconstruções, os filmes falham em suas melhores intenções.

Além disso, há uma questão mais prática: os filmes simplesmente não funcionam individualmente. Se a intenção da equipe criativa era ilustrar artisticamente a jornada que levou dois jovens a se tornarem assassinos, não seriam os depoimentos dos mesmos a melhor ferramenta para uma reconstrução respeitável. E se a intenção era colocar o pragmatismo em segundo plano em nome de um ensaio sobre o que é, de fato, a verdade, a narrativa se beneficiaria de uma estrutura de filme único, com as idas e vindas de versões conflitantes instigando o espectador a pensar.

Não são filmes sem méritos. Como Suzane, Carla Diaz surpreende com seu alcance, interpretando as duas versões da assassina (a maquiavélica e a inocente corrompida) da adolescência à maturidade, com nuances e trejeitos que, se não soam sempre naturais, o fazem de forma operística condizente com a escala da tragédia. Nas cenas de tribunal, ela pontua com clareza que Suzane caminha sempre no limiar da verdade, mesmo que isso só reforce a falta de sentido em assistir a um filme inteiro, que é na realidade apenas metade de outro filme, baseado na dramatização do relato de uma personagem manipuladora. Ainda assim, é interessante e envolvente vê-la contracenando com Leonardo Bittencourt, não só pela inegável química da dupla, mas pelos estilos diferentes de atuação. Diaz é mais teatral, expansiva, enquanto Bittencourt é mais naturalista – adjetivo aqui usado de forma totalmente elogiosa, já que isso faz com que o jovem ator de Manaus arque com a responsabilidade de aterrar as cenas mais vilanescas do casal. E consiga.

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Além de um elenco de apoio que faz valer sua vasta experiência em atuações sólidas, composto por Vera Zimmermann, Leonardo Medeiros, Débora Duboc e Augusto Madeira, a direção de Mauricio Eça também traz bons momentos na construção das cenas espelhadas; ainda que, novamente, fosse mais rico poder acompanhá-las em contraposição direta, não em filmes distintos. Elementos de cena e posicionamentos de câmera e atores ajudam a fazer a experiência de ver os mesmos momentos de pontos de vista diferentes o menos maçante possível, o que não pode ser dito da reutilização de passagens inteiras entre um filme e outro. Entre erros e acertos, entretanto, fica clara a paixão pelo projeto, filmado em apenas 33 dias em processo intensivo e ainda assim marcado por uma fotografia bonita e um interessante comentário sobre o embate entre classes sociais distintas, ainda que subaproveitado (deveria ser a tese do filme, que parece persegui-la, mas nunca alcançá-la).

Há anos explorado em filmes e séries de TV norte-americanos, o subgênero de crimes reais ainda caminha vagarosamente na ficção brasileira, e é louvável o esforço dos envolvidos em A Menina Que Matou os Pais e O Menino Que Matou Meus Pais em contribuir para a mudança desse cenário. Entretanto, a máxima continua a mesma quando se investe no resgate de histórias dolorosas para muitas pessoas: há de haver um propósito maior. Embora boas atuações, vislumbres de uma discussão mais profunda e o esboço de algo relevante a dizer façam valer a curiosidade pelo projeto, é difícil encontrar algo nele que não esteja melhor representado em um documentário, uma reportagem, uma página da Wikipedia ou nos próprios autos do processo de onde saíram os roteiros.

Nota do Crítico
Regular