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Em Jackson Heights | Crítica

Documentário sobre a vizinhança mais cosmopolita do mundo faz bonita defesa da preservação da cultura e da dignidade

05.10.2015, às 13H08.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H37

Frederick Wiseman não é ícone de todo documentarista por acaso. O diretor de 85 anos, conhecido por seus filmes sem narrador/entrevistador, demonstra em Em Jackson Heights (In Jackson Heights, 2015) como buscar a objetividade sem fazer disso uma utópica bandeira pela imparcialidade, e ao mesmo tempo fazer um filme de uma clareza de raciocínio ímpar, sem se tornar didático demais.

O longa se passa na vizinhança do Queens que, demograficamente, é um dos lugares mais cosmopolitas do mundo. Jackson Heights recebe há décadas imigrantes de todos os lugares, atrás do sonho americano, e logo no começo do filme o vereador Daniel Dromm frisa que falam-se por lá 167 idiomas diferentes. Mesquitas e sinagogas convivem no mesmo bairro - é uma das coisas que Wiseman mostra de início, a título de síntese. Nada pode ser mais sintético do caldeirão de culturas de Jackson Heights do que judeus e muçulmanos no mesmo espaço.

Com frequência vemos documentários que já começam amarrados pelo dilema do registro: como tornar a câmera invisível ou escancarar sua presença para problematizar a relação do observador com o observado? Para Wiseman isso não se torna uma questão em seus filmes. Aqui ele minimiza esse dilema de algumas formas. Uma delas é pegar pessoas que verbalizam sua condição não para a câmera mas para outras pessoas em situação similar. Assim, Em Jackson Heights se faz de cenas em assembleias, encontros de centro comunitário, conversas confessionais em sessões de terapia coletiva ou apenas entre amigos.

A presença inibidora da câmera se torna um elemento menor, também, porque Wiseman não pede às pessoas para encenar nada que esteja fora de suas rotinas. Vemos o dia a dia de açougues, cabeleireiros, restaurantes, lojas de tatuagem - é com a obsessão do registro que Wiseman passa duas horas, do total de 190 minutos de Em Jackson Heights, documentando cenas do cotidiano e do ofício desses imigrantes. Sua câmera "desaparece" não apenas para as pessoas no filme, envolvidas em gestos maquinais, mas também para o espectador (a não ser quando Wiseman faz questão do close-up para pontuar o trabalho manual, como na cena com as amigas tricotando).

Uma vez que se dissipa essa "ameaça" da parcialidade, então Wiseman começa a fazer de seu filme algo mais. No registro do cotidiano fica latente uma homenagem ao pequeno ofício artesanal que está no coração do capitalismo americano, dos self-made men, em oposição à voragem dos especuladores imobiliários de Manhattan, face envergonhada do liberalismo. Nas repetidas cenas em assembleias de orgulho gay, em jogos de futebol com a torcida colombina (o filme foi feito na época da Copa de 2014), em missas católicas, começa a se formar e a se acumular uma noção de coletividade e de organização social que substitui um Estado omisso.

O resultado é um filme que deixa algumas certezas, como a de que o dinheiro não tem pátria, e tem inegável importância pedagógica, como a introdução que faz ao conceito de gentrificação. Acima disso, porém, Em Jackson Heights é uma elegia muito bonita de coisas que nos parecem dadas, garantidas, e só quando elas acabam nós descobrimos sua fragilidade. Coisas que exigem um compromisso constante, seja preservar viva uma cultura ou combater um preconceito. Se houvesse uma faculdade de ativismo, Em Jackson Heights seria currículo-base.

Nota do Crítico
Excelente!