Em conversa com a Variety, antes da estreia de Drácula no Festival de Cinema de Locarno, o diretor romeno Radu Jude definiu o filme como “uma carta de amor a Ed Wood”. Embora a referência ao estadunidense, comumente considerado “o pior cineasta da história”, faça sentido em alguns momentos das inacreditáveis 2h50 de Drácula, a verdade é que Wood jamais teria feito um filme tão extrapoladamente metatextual, e tão claramente desdenhoso do próprio formato. Se a ideia era mesmo fazer uma carta de amor ao cinema inepto, mas sincero, que tem no autor de Plano 9 do Espaço Sideral o seu representante máximo, bom… a carta está aqui, mas ficou faltando o amor.
Ao invés disso, Drácula é cinema-polêmica. Do início, em que dezenas de renderizações de Vlad o Empalador feitas por IA repetem a mesma frase obscena (“Eu sou Drácula, chupe o meu p*u”); até o final, em que um gari assiste à apresentação da filha na escola de longe, porque ela lhe confessou ter vergonha do seu uniforme de trabalho; Jude está disposto somente a provocar, zombar e destilar veneno. Não há, aqui, apreciação pelos formatos de gênero, nem vontade de usá-los para subverter alguma deficiência ética do cinemão comercial – há só desprezo, e vontade de expô-lo.
A premissa é, ostentosamente, dar ao vampiro criado pelo autor irlandês Bram Stoker sua primeiríssima versão cinematográfica realizada na Romênia, país natal do tirano histórico que inspirou sua criação. Não faltam ideias para Jude, representado no filme por Adonis (Adonis Tanta), um cineasta que vai nos apresentando os diferentes segmentos do longa direto de sua mesa de trabalho bagunçada, olhando para a câmera e falando como uma versão de araque do cientista-narrador vivido por Bela Lugosi em Glen ou Glenda, um dos “clássicos” de Wood.
A partir daí se sucedem mais de uma dúzia de capítulos de diferente ensejo e duração, ora conduzidos por criações aberrantes de IA generativa (vide a recriação tosca da única cena em romeno do Drácula de Bram Stoker dirigido por Francis Ford Coppola), ora encenados por Jude utilizando atores de carne e osso. E alguns parecem estar aqui puramente para adicionar à duração do filme, que faz parte da “trollagem” do diretor com o público, reiterando também a sua afirmação anti-estética da vulgaridade grotesca de um mundo artístico guiado pela inteligência artificial.
O Drácula de Jude, é verdade, usa a IA para zombar da IA – e o sentimento do espectador sobre isso vai depender inteiramente de como ele vê a eficácia ou a necessidade da sátira como ferramenta social. No fundo, o cineasta romeno está reproduzindo uma preguiça criativa da qual também se mostra pronto para desdenhar, servindo à geração do “brainrot” uma confecção que lhe parece definidora do seu ethos com um sorriso de escárnio no rosto, desafiando-os a comer tudo em uma bocada só… e lidar com a indigestão depois. Mas entender a provocação não faz de Drácula uma experiência cinematográfica melhor.
Para ser justo, existem momentos no filme que deixam entrever algo de mais substancial. O longo segmento adaptado de O Vampiro, livro de Alexandru Bilciurescu que é considerado a primeira história romena a incorporar os sanguessugas, conta com um humor absurdo que deixaria Mel Brooks orgulhoso, e um olhar afiado para a fragilidade boba de alguns dos chavões do romance gótico.
Ali, sim, há certo amor por Ed Wood – conforme seu vampiro de máscara de isopor anda de um lado para o outro em descampados inconspícuos da Romênia (transeuntes e carros modernos aparecem ao fundo nas cenas mais urbanas), ou sua câmera deixa entrever as luzes e estruturas do estúdio disfarçado de taverna medieval onde se passa parte da história (cujas mesas são povoadas por figurantes de papelão), é possível identificar em Drácula um pouco do prazer pelo capenga que torna filmes como os de Wood infinitamente (re)assistíveis.
Mas esses flashes de inspiração trash são pouco para alimentar 2h50 de um polemista excessivamente enamorado da própria polêmica. Drácula, no fim das contas, serve só para afagar o ego de quem já sabe tudo o que ele tem a dizer. A julgar por um trecho do monólogo final de seu protagonista-narrador, Jude está esperando que uma parte do público rejeite seu filme pela vulgaridade excessiva, ou pelo amadorismo claramente intencional. E sua posição é, de certa forma, inatacável: o cineasta se coloca, aqui, como um artista travesso segurando um espelho para a cultura pop saturada e infinitamente saturadora que vê diante de si.
Identificar todo esse empreendimento retórico do filme é fácil, mas também não é difícil chegar à conclusão que ele só serve a um exercício masturbatório vazio. E desses, como Jude bem aponta em vários segmentos de inclinação pornográfica, os nossos feeds de redes sociais já estão cheios.
*Drácula foi exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Ainda não há previsão de estreia no circuito comercial brasileiro.