Filmes

Crítica

Do Outro Lado da Lei | Crítica

Do outro lado da lei

22.06.2004, às 00H00.
Atualizada em 28.11.2016, ÀS 01H05

Do outro lado da lei
El Bonaerense
Argentina/Chile/França, 2002
Drama - 104 min.

Direção: Pablo Trapero
Roteiro: Nicolas Gueilburt, Ricardo Ragendorfer, Dodi Shoeuer, Pablo Trapero, Daniel Valenzuela

Elenco: Jorge Román, Mimí Ardú, Darío Levy, Víctor Hugo Carrizo, Hugo Anganuzzi, Graciana Chironi, Luis Viscat

Frank Serpico, o policial vivido por Al Pacino no filme homônimo, de Sidney Lumet, é a personificação do ideal estadunidense. Justo sem ser intolerante, corajoso sem ser temerário, o íntegro homem de distintivo que desafia os seus parceiros corruptos e até a morte iminente em nome da ordem.

Mas nas frágeis democracias da América Latina as coisas são diferentes. Por exemplo, na Argentina, onde toda crença nas instituições caiu junto com os bancos, a paridade cambial e o presidente Fernando de La Rúa, em 20 de dezembro de 2001. O policial Zapa, protagonista do portenho Do outro lado da lei (El Bonaerense, 2002), é a antítese miserável do herói inabalável, o primo condenado de Serpico.

O diretor Pablo Trapero, ele próprio um bonaerense, nativo da capital federal, dirigiu o filme em Buenos Aires após a bancarrota nacional. O cineasta capta de forma intensa, em crueza granulada e cores saturadas, toda a imediata desestruturação da cidade. Ruas imundas e mendigos eram os sinais menos agressivos; manifestações violentas nas ruas e em repartições davam melhor retrato do caos.

É esse o ambiente que espera Zapa (Jorge Román), um chaveiro largado de 32 anos que não pede muito da vida de uma província rural. Certo dia, quando aceita abrir um cofre encomendado por seu chefe, acaba preso. O chefe foge. Mas como tem um tio influente, Zapa é solto e mandado para Buenos Aires, para trabalhar em La Bonaerense, a orgulhosa polícia local.

A inépcia do caipira fica logo evidente, segurando uma arma ou tentando decorar a hierarquia das patentes. Mas mais evidente é a ruína da divisão. Viaturas não funcionam, pagamentos atrasam, pistolas precisam ser compradas em contrabando - e o preço debitado do salário de cada policial. Com o seu corpo mole, o seu raciocínio lerdo, as suas poucas palavras, Zapa não tem o menor rebolado para lidar com a situação. Mas não tem dificuldades em seguir ordens - e encontra no comissário Gallo (Darío Levy) um padrinho polpudo.

Aos poucos ele entra no esquema paralelo de remuneração. Na sua província natal, a família fica contente com as promoções de Zapa. Este continua apático - sem caricaturas, mérito da ótima atuação de Román - mas aprende rápido a driblar eventuais remorsos. Sentimo-nos constrangidos nas cenas em que ele cobra propina. Temos honesta piedade da sua condição. Isso acontece por Zapa não ser a causa, mas a consequência da situação. Ele simplesmente aceita a opção que lhe é imposta. Em meio ao caos, recusar a corrupção seria negar a sobrevivência.

Modesto, Do outro lado da lei conta essa história bem particular, dentro de um universo muito específico de rotinas e atribuições. Não julga, não faz o elogio do campo, nem demoniza a cidade. Mas esse pequeno relato alcança a transcendência ao mostrar como o colapso do macro, do poder que rege os demais, não demora a contaminar todas as camadas institucionais - inclusive a que zela por todas, a policial.

Serpico teve a sorte de contar com a solidez dos tribunais. Sem baliza ou norte algum, Zapa está entregue.

Nota do Crítico
Bom