A primeira cena de Die My Love se desenrola de forma paciente. Estática, a câmera capturando as salas e corredores de uma grande casa no interior dos EUA aguarda, com a cautela já conhecida dos filmes de Lynne Ramsay (Precisamos Falar Sobre o Kevin), a chegada de Jackson (Robert Pattinson) e Grace (Jennifer Lawrence). Então, quase instantaneamente depois da mulher, uma escritora, concluir sua examinação inicial do local dizendo para o marido roqueiro que precisa de uma vassoura – uma fala que dobra como a de uma dona de casa e, eventualmente, de uma bruxa – entramos no caos.
É como se a montagem de Toni Froschhammer precisasse correr para alcançar o ritmo do casal, que brinca com corpos soltos e depois, numa das mais sensuais cenas íntimas entre duas estrelas no cinema recente, corpos nus. Entre o sexo e a diversão, música e risadas altas, vemos um incêncio tomando a floresta ao redor de seu novo lar, uma ilustração do fogo que existe dentro deles, e de um para o outro. Die My Love nunca mais voltará para o estado de calmaria com a qual Ramsay abre sua história, mas essa energia pulsante – outrora dedicada ao sexy, jovial e musical – passa a ter outra essência.
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Na cronologia da história, a mudança não vem tão cedo. Durante a gravidez de Grace, ainda há leveza nas interações dos dois. É só quando cortamos para o momento em que ela e Jackson passam a ser acompanhados por um bebê que a atmosfera naquela casa começa a mudar. Entramos, então, no que Ramsay encena como um surto febril de depressão e mania pós-parto, com Grace cada vez mais animalesca e Jackson cada vez mais distante, e então Die My Love ganha um ar propositalmente exaustivo, onde audiência e personagens serão testados por um nível de incompreensão pessoal poucas vezes tentado em filme.
A primeiríssima vez que vemos Grace após o parto, é com a mulher engatinhando como uma leoa pelo gramado da casa – algo que antes ela fazia de lingerie para seduzir o homem – enquanto segura uma faca e tenta se masturbar. Imediatamente, a atuação brevemente apaixonante de Lawrence troca de marcha. Onde havia júbilo, agora há desequilíbrio. Grace intimida, intriga e assusta. A cena termina com a nova mãe levando a faca até seu filho, que passa boa parte do filme sem receber um nome, e esquecendo a lâmina ao lado dele. O menino é novo demais para conseguir segurar o objeto, mas por mais que não haja um perigo aparente imediato, a imagem ainda deixa claro o grau de imprevisibilidade e perigo que devemos esperar de agora em diante.
As duas horas que se seguem reforçam esse ponto repetidas vezes, enquanto Grace e Jackson entram num vai-e-vem cansativo e intenso onde os dias bons envolvem uma raiva quieta, manifestada pelo afastamento físico dos dois, e os dias ruins transformam aquele lar numa cacofonia de ansiedade. Não satisfeito com o choro da criança e incapaz de ouvir música num volume normal, Jackson decide adotar o cachorro mais mal comportado e barulhento do mundo, e passar pelos momentos mais desordeiros do filme é um teste genuíno.
Trata-se, claro, da intenção de Ramsay, uma cineasta que sempre brilhou na hora de traduzir as mais sombrias, peculiares e indefiníveis emoções de seres humanos para imagens e sons, algo que se repete em Die My Love mesmo quando seu roteiro, uma adaptação do livro homônimo de Ariana Harwicz, parece ter esgotado suas ideias. As cenas mais interessantes do longa acontecem quando Grace é colocada lado a lado com um de seus sogros – a Pam de Sissy Spacek não sabe bem o que fazer para ajudá-la, mas entende a nora instintivamente, e o Harry de Nick Nolte, sofrendo com demência, é literalmente a pessoa com quem Grace mais se entende – ou quando Jackson enfim acorda para a gravidade da situação e o personagem de Pattinson, até então um perdedor impotente, ganha uma tridimensionalidade bem-vindo ao tentar, com todas as forças, ajudar sua parceria, e o ator – especialista em papéis de derrotados – encontra espaço para comunicar seu charme.
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Em quantidade, porém, esses momentos intrigantes são em muito superados por sequências feitas para sublinhar a crise de Grace. Se Ramsay brilha comunicando as nuances da situação da nova mãe em seus primeiros atos de loucura, o poder dramático dessas instâncias vai se esvaziando, deixando ainda em tela a atuação de Lawrence, crua e vulnerável, é sempre um imã visceral e impressionante. Não é um exagero dizer que ela nunca teve um papel tão desafiador e tão ingrato, e que nunca entregou um trabalho desse patamar. As comparações com Mãe! serão inevitáveis. Casa isolada, esposa sozinha, marido distante, etc. Mas onde o filme de Aronofsky parecia se deleitar no sofrimento, Ramsay mantém sempre a empatia, e consequentemente terminamos Die My Love emocionalmente devastados. A caracterização de Grace, por exemplo, nunca a vê como uma mãe odiosa. Ela está sofrendo, claro, mas da mesma forma que seria fácil, e infeliz, transformar Jackson num homem sem carinho, Die My Love evita enxergar sua protagonista como alguém que culpa seu filho. O casal nunca é simplificado.
A reta final, em especial uma cena de cantoria com os dois no carro, ajuda a retornar uma sensação de progresso narrativo para o filme, novamente conferindo às excelentes atuações em seu centro uma relevância textual. Há uma dose de ambiguidade para a conclusão, sugerindo que aquele ciclo destrutivo pode durar para sempre. Mas talvez, apesar de tudo isso, eles terminem juntos no arco-íris.