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Crítica: Tio Boonmee, que Pode Recordar suas Vidas Passadas

O antídoto da mortalidade

20.01.2011, às 19H24.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 14H09

Apichatpong Weerasethakul adora janelas. Mas, como tudo em seus filmes, uma janela nunca é só uma janela.

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festival de cannes

tio boonmee

Em Tio Boonmee, que Pode Recordar suas Vidas Passadas (Lung Boonmee Raluek Chat, 2010), a primeira a aparecer é a janela de um carro. O tio do título viaja com sua irmã, Jen, até a casa na floresta onde deseja passar os seus últimos dias; Boonmee sofre de insuficiência renal. Na estrada, Jen abaixa o vidro do passageiro e, com os sons de fora, invadem o carro, absorvidos pela lente da câmera, os primeiros raios de sol da manhã.

O risco de mitificar Apichatpong - ou Joe, como costuma ser chamado - está sempre presente. Nas suas mãos, o mundano se torna sublime sem esforço, e o desafio de interpretar o seu cinema sensorial pode ser um exercício não só dispersivo como arbitrário. Há alguns elementos recorrentes em seus filmes, porém, que permitem uma leitura exata. Um deles é a paridade. Tudo com Joe tem um duplo (as narrativas dípticas de Mal dos Trópicos e Síndromes e um Século, por exemplo), e as janelas surgem com frequência para fazer a passagem de uma face à outra.

Em Uma Carta para Tio Boonmee (2009), o curta-metragem que preparou terreno para o longa que viria a ganhar a Palma de Ouro em Cannes este ano, as janelas nunca estiveram tão presentes. Elas marcam a divisa entre os interiores das cabanas e a floresta tailandesa, entre a memória individual e a coletiva, entre o agora e o sempre. Já Tio Boonmee, o mais esotérico dentre os longas do cineasta, não demora muito em largar a cabana e se enfiar no mato. A janela aberta do carro seria o primeiro indício da jornada espiritual em que Boonmee e familiares estão ingressando, banhados de luz.

O convite se estende ao espectador. Depois do prêmio no festival francês, a curiosidade aumentou, e fala-se muito, com perplexidade diante da piração, do macaco-fantasma e do peixe comedor que aproximam Tio Boonmee do gênero da fantasia. Mas a viagem, antes de mais nada, é o contato mais imediato que se tem com o mundo. Ela exige apenas que se abram as janelas. Ouvir os barulhos da floresta com o excepcional desenho de som que Akritchalerm Kalayanamitr faz para Joe desde Mal dos Trópicos já é, em si, uma experiência imersiva.

Com Tio Boonmee, Apichatpong Weerasethakul, filho de médicos, realimenta a sua fixação pela medicina moderna versus o poder de cura do tempo (tema do mais cerebral Síndromes e um Século), cria com uma mera bolsa de diálise algumas das sacadas visuais mais pungentes que uma história de luto pode oferecer e fabrica diante dos nossos olhos um antídoto contra a mortalidade. É um filme fadado a cada sessão a renascer de novo.

Nota do Crítico
Excelente!