Na peça As Três Irmãs, de Anton Chekhov, uma família russa que vive no interior há anos sonha em retornar para sua Moscou natal. Na capital há animação, prosperidade; na província há casamentos sem amor. Moscou representa uma utopia, uma eterna busca - então é um grande achado poético que o novo documentário de Eduardo Coutinho, por sugestão de João Moreira Salles, leve esse nome.
moscou
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Desde que começou a se impor como o principal realizador do documentário brasileiro, com Cabra Marcado para Morrer (iniciado em 1964 e finalizado em 1984), Coutinho questiona a figura do observador/encenador diante de seus objetos de estudo. A "mentira" da representação deixou de ser uma sombra e passou a ser o tema principal de seu cinema a partir de Jogo de Cena (2007) - um filme que tinha muito de lúdico e que encontra em Moscou um irmão-problema.
Coutinho chegou ainda em 2007 para o grupo de teatro Galpão com uma proposta: eles ensaiariam por três semanas a peça chekhoviana, sem fins de encená-la publicamente, e Coutinho filmaria esses ensaios. Para dirigir o elenco convidou-se Enrique Diaz, que já montou As Três Irmãs em 1999. Luzes, marcações, tudo passa por Diaz; Coutinho só registra.
Antes disso, ele propõe um exercício: que cada integrante do elenco se apresentasse, que falasse em um minuto um pouco de sua família. Esses dados são o mínimo que o espectador, deste lado, tem para gestar uma interpretação de Moscou na qual os personagens da peça e a vivência pessoal dos atores se cruzam e se alimentam. Até aí, é o beabá do método strasberguiano.
A coisa começa a ficar interessante, ainda na linha de adivinhação de Jogo de Cena, quando tenta se pegar nuanças de atuação em momentos distintos - quando os atores estão no palco e quando estão no break do café, por exemplo. Quem assiste fica tentado até a separar o que é memória afetiva do que é montagem de fato. O dilema essencial proposto por Coutinho, porém, parte do princípio de que tudo é montagem.
E aí vale a pena atentar também para o esforço que a câmera faz para influenciar ou não a mise-en-scène que, em teoria, é apenas de Enrique Diaz. O diretor cuida da cena (e o encontro entre os atores Eduardo Moreira e Fernanda Vianna sobre a passarela é marcante), mas a câmera é que aplica o zoom, que seleciona os closes - que elege, enfim, aquilo que vamos ver, uma prerrogativa não teatral, mas cinematográfica.
Com tantos componentes em xeque, Moscou é um filme menos focado - e consideravelmente mais ambicioso - do que Jogo de Cena. A Moscou utópica de Eduardo Coutinho é um lugar onde todos os artifícios se desnudam para que possamos analisá-los, mas até que ponto esse desnudamento é possível?
Moscou periga rodar em falso nessa busca (o que não deixa de ser chekhoviano) e o primeiro a enxergar isso é o próprio Coutinho, tanto que precisou do aval de um dos seus "discípulos", João Moreira Salles, para ter certeza de que "existe um filme" ali. Já há quem se oponha: montador de Cabra Marcado, Eduardo Escorel escreveu na piauí #35 que "nada ocorre de interessante nas 80 horas de gravação".
Percebe-se que o nível da discussão é alto - uma discussão que em boa parte prescinde de egos, tanto que se tornou pública desde o desenvolvimento do filme, e não custa lembrar que Salles integra a redação da piauí - e, independente da qualidade de Moscou, é vital que ela exista.