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Crítica

Cinquenta Tons Mais Escuros | Crítica

De olhos bem abertos

08.02.2017, às 18H46.
Atualizada em 08.02.2017, ÀS 20H01

Tudo que Cinquenta Tons de Cinza precisava era de um diretor de thrillers baratos, e a melhor decisão que os envolvidos poderiam tomar era contratar James Foley para a continuação, Cinquenta Tons Mais Escuros. O diretor entende o potencial do material de E.L. James - que sempre foi comportado demais para virar um softcore decente - e cria neste segundo filme uma farsa perfeita para os nossos tempos de cinismo.

Como bom diretor de aluguel, Foley não ostenta. A primeira cena, um flashback da infância de Christian Grey, sublinha o dilema caricaturalmente edipiano que serve de tema ao longa, um protocolo narrativo para sintetizar todo o conflito que agora marca a vida de Anastasia e Grey, namorados que em momento algum deixam de ser polos opostos num jogo de poder. O flashback, porém, parece muito mais próximo de um filme de terror do que de um drama - a opção pelo tom sépia, a ameaça que busca o garoto debaixo da cama - e é essa marca que Foley secretamente imprime ao filme, a do horror.

Porque, uma vez superados os pudores de SM de Anastasia, este 50 Tons parece liberto para lidar com o horror mais profundo da série: a entrega da donzela que se anula conscientemente por uma fantasia de luxo e felicidade no mundo dos homens. Foley não faz um thriller erótico no sentido tradicional, como o grande público habituou-se a assistir com Kim Basinger ou Sharon Stone nos anos 80 e 90, e sim um suspense que se sabota o tempo todo com alarmes falsos - a presença da jovem que reaparece pálida como uma fantasma de Submissões Passadas, a do chefe psicótico que tem escrito "assédio" na testa, a da velha mestra imobilizada pelo botox a quem só restou o papel de esfinge misteriosa - para injetar em Anastasia o pior dos pavores, aquele que prescinde de uma ameaça consumada.

Essa condição normalmente levaria à paranoia, e a pobre heroína se veria devorada pela dúvida. O grande lance diabólico de Cinquenta Tons Mais Escuros é que Christian Grey - embora carregue sempre neste filme aquela barba por fazer, típica dos pequenos vilões - não se presta em nenhum momento às teorias da conspiração, que enfim dariam às incertezas de Anastasia uma válvula de escape. Quando Grey desaparece numa "reunião em outra cidade", ele sequer dá margem a clássicas suspeitas de traição, porque não é um adúltero e sim um ícone do 1% - e ainda retorna como um Tarzan triunfante depois de atravessar uma selva a tempo da ioga matinal.

Se este filme fosse um daqueles suspenses baratos de Supercine, o galã se revelaria um assassino em série depois de conquistar a mocinha com sua incomensurável virilidade. O próprio James Foley já fez esse filme, Medo, em 1996, e de certa forma repetiu a dose dirigindo episódios de House of Cards. Mas Cinquenta Tons Mais Escuros, um thriller desestabilizante e quase ontológico sobre sua própria capacidade de manter suspenses, tem outras intenções. Anastasia Steele se blinda no autoengano, cercada de tipos falsos que homogeneamente atuam no artificialismo, das amigas histéricas aos senhores benevolentes da editora de livros, e com eles traça um sinistro pacto de condescendência que, impregnado pelo mal estar dos podres de rico, contamina o mundo ao redor.

Por trás da superfície evidentemente ridícula de 50 Tons, com seu ostensivo humor (in)voluntário, há uma farsa sobre resignação. O filme tem plena consciência disso, mas o único indício de que os personagens têm alguma noção do seu próprio ridículo é quando Anastasia responde ironicamente aos comandos de Grey - uma concessão mínima que o filme faz para não desmoronar com o peso da própria encenação e para se manter funcionando sob as mesmas regras, até o final. Depois de brincar de Bridget Jones, de filme de assédio, de exercício metalinguístico (melhor que a presença de Kim Basinger, só se Joe Eszterhas tivesse uma ponta no filme), Foley estaciona no conto-de-fadas, gênero desvirtuado aqui com um gostinho de misantropia no melhor estilo Paul Verhoeven, cineasta para quem a tal beleza americana antes de mais nada era uma questão de feiura.

Nada impede que o terceiro longa abrace a violência do thriller erótico americano tradicional, em que o pecado do sexo sem culpa se pune com a morte, afinal. Como todo personagem aqui se comporta como se fosse o suspeito em potencial de eventuais crimes passionais, do latino da friendzone à gerente de RH, seria a resolução mais feliz se 50 Tons terminasse como o último capítulo de A Próxima Vítima (a novela), num grande baile de convidados desmascarados, dedos apontados e horrores consumados.

Talvez Grey morra, redimido na dor, ou chacine a todos com brinquedos de grife de calibre mais alto, o sadismo derradeiro, ou tudo termine com Anastasia Steele reconhecendo seu alpinismo social - e vivendo em paz com isso. Por enquanto, o que temos é uma história prenhe de um potencial de destruição, mantida no teatro mais sinistro, ainda que dormente, de uma Seattle que poucas vezes esteve tão melancólica, cuja paisagem é marcada no fim do filme não pela lua cheia agigantada dos amantes, mas dos amaldiçoados.

Nota do Crítico
Ótimo