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Filmes

Crítica

Cidade Perdida conjuga diferentes linguagens do humor em ótima aventura

Filme tira o melhor de Sandra Bullock, Channing Tatum, Brad Pitt e Daniel Radcliffe

21.04.2022, às 15H50.

Não são necessárias mais do que três cenas de Cidade Perdida (que, muito conscientemente, parodia o título de Z: A Cidade Perdida) para deixar evidente a reverência honesta que os diretores-irmãos Adam e Aaron Nee nutrem pelos grandes filmes de aventura. Há logo de cara a repetição de uma certa gramática visual típica às produções do gênero — com sua fotografia ostensiva, seus diálogos tipicamente cafonas e seus atalhos narrativos previsíveis, mas nunca tediosos —, que serve para explicitar uma dispensa consciente a qualquer sutileza. Mas, se isso acontecia para ressaltar o espetáculo em clássicos dourados como As Minas do Rei Salomão (1950), ou modernos como Os Caçadores da Arca Perdida (1981), é aqui instrumentalizado em prol de um mergulho franco nos anais do cinema de comédia e em sua pluralidade histórica.

O roteiro, assinado por Oren Uziel, Dana Fox e pelos próprios Irmãos Nee, usa uma premissa naturalmente cômica (e inesperadamente inteligente) como pretexto para empregar basicamente todas as linguagens de humor possíveis em um mesmo filme: do físico ao discursivo, passando pelo gore e o metalinguístico, também pincelando aqui e ali o trash e o nonsense até chegar na romântica. Cidade Perdida é, portanto, orgulhosamente uma comédia-comédia, mas navega o limiar da bobeira sem abraçá-la totalmente, em abordagem diferente do que fez recentemente, por exemplo, Duas Tias Loucas de Férias (2020), com seu comprometimento total ao absurdo. Paródia emotiva, Cidade consegue cercear o riso na medida certa para evitar que ele polua seu respeito por tudo aquilo com o qual faz piada, preservando um apelo emocional surpreendentemente cativante

Estruturalmente, os alvos desse respeito jocoso são três: os clássicos filmes de aventura, claro; o mercado literário moderno; e o próprio elenco da produção, surpreendentemente estrelada. Cidade Perdida conta a história de Loretta Sage (vivida por Sandra Bullock, que também produz o longa), uma bem sucedida – mas frustrada – escritora de romances eróticos, inspirados em mitos históricos de civilizações indígenas. Em depressão pela morte de seu marido, um inovador arqueólogo, ela decide implodir sua carreira quase que ao mesmo tempo em que torna-se alvo de um excêntrico bilionário (vivido por Daniel Radcliffe), empenhado em usá-la para encontrar uma lendária cidade perdida, citada em um de seus livros.

Sequestrada pelo ricaço, ela conta com a ajuda de um grupo disfuncional em uma missão potencialmente suicida de resgate: o nada brilhante (mas gostosão!) modelo de capa de seus livros, objeto do desejo de uma legião de leitoras e leitores excitados (Channing Tatum), sua agente neurótica (Da'Vine Joy Randolph), uma fútil analista de redes sociais (Patti Harrison) e um implacável aventureiro contratado (Brad Pitt). Enquanto dois deles ficam nos Estados Unidos, em apoio remoto, dois deles tentam ir de encontro com a escritora. E começa a bagunça.

A diversão do público, entretanto, tem início antes disso. Equilibrando o drama da protagonista com ótimas tiradas sobre um dos filões mais lucrativos do mercado editorial mundial, Uziel, Foz e os Nee conseguem logo de cara arrancar boas risadas, apresentando a possibilidade de um humor mais inteligente como sinal de seu mergulho totalmente intencional na bobeira. Como uma acadêmica frustrada que optou por escrever romances eróticos só como forma de pagar as contas, Bullock internaliza um desdém ácido e palpável por sua própria obra de vida. Esse sentimento é imediatamente confrontado pela alegria que o personagem de Tatum experimenta ao viver o personagem fictício dos livros dela, em um atrito que prenuncia mudanças saborosas. Como toda a gramática exagerada dos filmes de aventura permite, nada disso é feito sutilmente, mas há honestidade e química o bastante para fazer tudo funcionar, mesmo nos momentos mais piegas.

Comédias de ação parecem ser mesmo o lastro da produção criativa dos Irmãos Nee, e em Cidade Perdida a dupla inspira segurança no que pode fazer com o filme de He-Man e os Mestres do Universo que desenvolve junto à Netflix. Em Tatum, Pitt e principalmente Bullock, os cineastas encontram intérpretes experientes em aliar porradaria ao humor. No trato dessas estrelas, os diretores têm como principal mérito a exploração plástica de seus talentos e a nitidez com que conduzem as cenas mais adrenadas. Quando a tensão no núcleo principal se eleva, Randolph, Harrison e uma inspirada participação de Oscar Nunes (o Oscar de The Office, novamente como um personagem chamado Oscar) conseguem oferecer ainda mais alternativas de riso. E parabéns são devidos à capacidade de Radcliffe em protagonizar como ninguém um processo gradativo de desintegração física e moral. O ator britânico se entrega totalmente à interpretação de uma versão muito mais psicótica e muito menos afável de John Hammond (Richard Attenborough) em Jurassic Park (1993).

Melhor como comédia do que como ação, mas ainda assim muito bem executado nas duas frentes, Cidade Perdida ainda é um filme que parece maior e mais caro do que foi de fato (o orçamento gira em torno dos US$70 milhões de dólares), o que é um testamento à segurança dos envolvidos na condução da história contada. De quebra, ainda traz uma ou outra reflexão mais inteligente do que uma comédia tão franca precisaria trazer. Se os filmes de aventura são a epítome do Cinema enquanto válvula de escape da realidade, há aqui muito pouco que poderíamos pedir a mais.

Nota do Crítico
Ótimo