Joo Won em cena de Carter, da Netflix (Reprodução)

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Crítica

Carter leva cacoetes do cinema de ação contemporâneo às últimas consequências

Produção sul-coreana é alucinante, mas se beneficiaria de um pouco menos de cinismo

09.08.2022, às 08H51.

Carter não poderia ter sido feito em nenhuma outra época - e, ao mesmo tempo, não é como nada do que está sendo feito hoje em dia. A atualidade de suas idiossincrasias é óbvia: a escala megalomaníaca e absurdista da ação remete a Velozes e Furiosos; a ênfase no impacto do combate corpo a corpo reflete John Wick; o estilo quase cartunesco ou gamificado das sequências de maior destaque, em que o protagonista enfrenta legiões de inimigos ao mesmo tempo, tem algo de Kingsman; e o truque de fazer o longa parecer filmado em um take ininterrupto é fruto da obsessão muito contemporânea com cenas de ação feitas dessa mesma forma (pense em Demolidor, True Detective e 1917).

A maneira como Carter se divorcia dessas e de outras produções que o influenciaram, no entanto, é menos evidente. Embora seja à primeira vista “apenas” um amálgama de tendências, o filme de Jung Byung-gil (A Vilã) brilha justamente por concentrá-las em uma única receita de thriller, mantendo o seu ritmo alucinante por quase 2h20 e extrapolando cada elemento da ação contemporânea a um nível que poderia facilmente resvalar na paródia, mas não se permite chegar lá - o que é simultaneamente exaustivo, pelo nível de tensão e seriedade que o filme mantém o tempo todo, e estranhamente admirável, porque significa que ele confia no valor do que está fazendo muito mais do que qualquer coisa saída da máquina hollywoodiana nos últimos anos.

O personagem-título de Carter, vivido por Joo Won (o Good Doctor original da TV sul-coreana), acorda certa manhã sem memória nenhuma de quem é ou onde está. Logo, uma voz misteriosa em seu ouvido o instrui a resgatar uma garota, Ha-na (Kim Bo-min), cujos anticorpos são a chave para curar uma doença misteriosa que tem se espalhado assustadoramente pelo mundo nos últimos meses. Perseguido pela CIA (representada no filme por Mike Colter e Camilla Belle) e por agentes sul e norte-coreanos, ele deixa um rastro de sangue atrás de si enquanto tenta completar sua missão em meio a interesses políticos conflitantes.

O diretor Jung Byung-gil é quem assina o roteiro, ao lado de Jung Byeong-sik, seu parceiro também em A Vilã, e este é um texto surpreendentemente inteligente, até por saber muito bem o quanto precisa ser inteligente (spoiler: não muito). Carter mantém uma postura subversiva do início ao fim, fazendo da presença intervencionista americana a grande vilã da primeira metade do filme, e mais adiante trocando-a pela ganância daqueles que tentam ganhar poder diante de uma situação de crise humanitária. O script não confronta a questão ética de como retratar o regime ditatorial norte-coreano, porque não precisa fazer isso: a sua briga é com quem lucra a partir da desgraça, independente da nacionalidade.

Parece uma linha delicada de se andar, mas a verdade é que Carter não precisa se esforçar muito para tomar uma posição firme nos raros momentos em que há uma pausa na ação. A qualidade da sua dramaturgia é até sólida, mas o filme não vê ponto em fingir que estamos aqui por sua retórica política ou profundidade emocional - saber que estamos assistindo a uma boa sessão de porradaria que não se prejudica moralmente é mais do que o bastante. Essa abordagem só incomoda mesmo nos momentos finais do longa, quando os roteiristas acham apropriado aplicar um golpe final de ironia cósmica aos personagens, expondo um cinismo despropositado que faz Carter uma confecção mais amarga do que parecia ser.

É difícil tirar esse gostinho incômodo da boca assim que os créditos sobem, mas o que o filme apresenta pelas mais de 2h anteriores é inegável: uma entrega incondicional aos prazeres do cinema de ação, à visceralidade dele como arte visual, às possibilidades infinitas dos corpos humanos em movimento na tela, e às ideias ainda mais infindáveis que os efeitos digitais são capazes de transformar em realidade. Envolvente em sua artificialidade, na falta de vergonha de ser o que é, Carter é uma experiência cinematográfica intensa e admirável, mesmo com suas deficiências - e talvez até, de certa forma, por causa delas.

Nota do Crítico
Bom