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16 de junho de 1904. Em Dublin, a correta cidade onde as garotas são tão belas como na vernácula canção tradicional irlandesa, Leopold Bloom acorda, vai ao banheiro, compra o café da manhã para sua esposa, Molly, comparece ao funeral de um amigo, vagueia pelas ruas até desembocar num bordel para, no limiar do final do dia, retornar ao lar. No mesmo dia, o jovem Stephan Dedalus também se vê envolvido com suas banalidades.
Em um brevíssimo resumo, esta é a história de Ulisses, de James Joyce (1882 - 1941), um dos maiores clássico da literatura mundial. O livro, que em sua época chegou a ser censurado nos EUA, é um catatau quase intransponível de mais de 800 páginas, que sempre desperta tanto paixões ocultas como desprezo absoluto no secto literário. Mas, o fato é que a obra é muito simples como paródia da Odisséia, de Homero, repleto de simbolismos mágicos. A diferença é que o grego prefere o modelo virtuoso, heróico. O irlandês representa o homem comum, sem nenhuma carga de heroísmo, envolvido em seus dramas particulares, absurdamente comuns e pornográficos.
Então, por que poucas pessoas se aventuraram em transformar a história em cinema? A resposta também é simples. As aventuras de Bloom, Dedalus e Molly são jornadas à consciências das personagens, algo que na linguagem cinematográfica traria muitos problemas. Basicamente, imagine-se gravando todo o seu pensamento enquanto uma câmera filma todo o seu dia. Depois, na edição, junte os dois. Tedioso, não? Porém, Sean Walsh arrisca trazer o dia joyciano em Bloom (2003) e o resultado é extremamente dúbio.
Recebido com indiferença quando lançado lá fora, Bloom padece das amarras mortais de Joyce. Texto, texto e dá-lhe mais texto. Bloom (Stephen Rea), Molly (Angeline Ball) e Stephen Dedalus (Hugh OConor) celebram o dia do Homem Comum, o arquétipo do herói joyciano. Mas Walsh parece indeciso entre ofender os seguidores do autor ou prestar-lhe um tributo.
Toda a ambientação de Dublin, fotografia e atuações estão corretas. Até mesmo a direção e roteiro. Mas - palavra maldita -, falta ousadia. O que se vê, no conjunto final, é uma transcrição típica de encenações documentais do autor, quase um daqueles programas literários da TV Cultura. Trechos e mais trechos em monólogo, com pouquíssimas interferências da linguagem cinematográfica. Talvez, por isso, o filme seja relativamente curto - 100 minutos.
Bloom realmente não funciona como cinema. Todas as nuanças do livro - o jogo de cores, as tensões simples entre as personagens, ficam suavizadas e poucas pessoas se sentirão confortáveis ao receberem tanto texto em frames por segundo, como na apresentação que Dedalus pode provar que Shakespeare era o verdadeiro Hamlet através da matemática.
Como consolo, quem quiser se aventurar na versão 24 Horas de James Joyce, o filme deixa evidente a ironia, as piadas e todo flagelo que o irlandês colocava em sua verve. Encarado desta maneira, Bloom ganha muito em interesse - ajudado pela impecável atuação de Rea.
Walsh optou por dar movimento a fragmentos do livro, o que, de fato, acaba por estragá-lo. Ulisses nunca se imaginou cinema. Uma verdadeira versão do livro para o cinema deve considerar a mudança de suporte, não uma transcrição pura e simples. Quem sabe na mão de um Baz Luhrmann da vida a coisa funcionasse melhor porque o Bloomsday é um tributo ao herói moderno, o herói de sua própria vida. E este Homem Comum Enfim merece respeito em película.