As dedicatórias nos créditos iniciais de As chaves de casa (Le chiavi di casa, 2004) logo chamam a atenção.
O filme é assinado em memória do escritor Giuseppe Pontiggia (1934-2003), cuja história real de sua vivência com o filho deficiente, Andrea, deu origem ao livro Nati due volte (Nascer duas vezes), que por sua vez inspira a película. Andrea Pontiggia é lembrado na dedicatória, assim como seu xará, Andrea Rossi, também deficiente físico e transformado em ator para participar da produção.
Tantas relações afetivas fora da tela podem sugerir uma obra coloquial, rendida, lacrimosa. O próprio diretor calabrês Gianni Amelio, de 61 anos, empresta seu nome ao personagem principal. Relato personalista, pode parecer. Mas é justamente o oposto: ao invés de lacrimoso e rendido, um tom contundente, direto e sem apelação; ao contrário de coloquial e personalista, uma história universal, de expiação de culpa e aceitação.
A narrativa começa com Gianni (Kim Rossi Stuart, de Além das nuvens) recebendo do cunhado uma fotografia e umas instruções. A foto é de Paolo (Rossi), menino de quinze anos criado pelos tios, o filho que Gianni nunca viu. Dá para perceber no rosto do homem que ele se constrange (não necessariamente se arrepende) de ter abandonado a criança depois da morte da mãe. Agora a chance de corrigir a omissão aparece na frente do pai ausente.
Da Itália, Gianni precisa levar Paolo a um hospital para deficientes físicos e mentais em Berlim. Exames cerebrais de rotina, fisioterapia para as pernas frágeis do menino. O primeiro contato entre os dois estranhos dentro do trem continental não é tão traumático quanto o pai imaginava. Depois ele reflete: Paolo se apegaria a qualquer um que passasse alguns minutos lhe dando atenção. Conversam, brincam, e só. A certa altura da viagem, Gianni telefona para sua atual esposa, mãe de seu segundo e saudável filho, para dar notícias - afinal, a vida que ele escolhera ficou à sua espera em Milão.
Assim, de uma quase obrigação, um desencargo de consciência, o filme aos poucos aprofunda a conexão entre os dois. A transição é vagarosa, freqüentemente retrocede, como nos bons filmes-de-estrada. Não acompanha a viagem em tempo real, obviamente, mas sabe dar tempo às coisas. A experiência não é fácil, nem para Gianni, muito menos para o espectador. A câmera examina Paolo sem pudor, passa em closes, se fixa na pele, acompanha quando ele caminha, sem cortes desnecessários ou planos demasiadamente elaborados. Simplesmente o observa - o que já é bem angustiante.
No hospital, uma senhora (interpretada com segurança pela ótima Charlotte Rampling) puxa conversa com Gianni. Ela se espanta, diz que esse tipo de trabalho sujo fica sempre com a mãe, nunca com o pai. Ela conta sua história, lhe empresta um livro - que não por acaso é o Nati due volte, de Pontiggia. Explica que vive há vinte anos em função da filha, que mal se comunica. Diz a Gianni para não se preocupar com os problemas que o filho enfrentará na vida adulta: A debilidade sempre o protegerá das pessoas, é você quem deve se preparar para sofrer.
Gianni não está pronto para sofrer, e As chaves de casa é, no fundo, a história dessa preparação. A grande conquista do diretor Amelio é, sempre de modo muito sincero, deixar claro que cuidar de um filho deficiente é uma espécie de castigo, de ingratidão. Ele não tenta florear a situação, nem simplificá-la. Há grandes sacrifícios, como também há pequenas felicidades. No caso de Gianni, o que um dia foi sentimento de culpa se transforma em redenção.
É como se ele, condenado, se penitenciasse por anos à espera da pena. Uma vez recebida, ele a cumprirá com vislumbre de liberdade.