Ana de Armas e Ben Affleck em cena de Águas Profundas (Reprodução)

Filmes

Crítica

Como thriller erótico, Águas Profundas é uma ótima comédia de costumes

Adrian Lyne está menos interessado em cenas de sexo do que está em tirar sarro dos ricos

18.03.2022, às 15H15.
Atualizada em 28.02.2024, ÀS 00H46

Águas Profundas era uma proposição bizarra desde o começo: um thriller erótico inspirado por um livro da autora de Carol (Patricia Highsmith), escrito pelos roteiristas de Mais Estranho que a Ficção (Zach Helm) e Euphoria (Sam Levinson), dirigido pelo responsável por Proposta Indecente e Atração Fatal (Adrian Lyne) e protagonizado pelo (já ex-)casal da vida real Ben Affleck e Ana de Armas. Como diria Natasha Lyonne naquela cena de Boneca Russa eternizada em memes no Twitter: “Que conceito”.

A surpresa, portanto, é constatar, agora que o filme chegou ao Amazon Prime Video brasileiro, que Águas Profundas é ainda mais estranho do que parecia no papel. A trama acompanha o casal Vic (Affleck) e Melinda (Armas), que vive uma espécie de casamento aberto: ele deixa ela se envolver com outros homens, ao menos em um primeiro momento, mas também tem uma tendência a botá-los para correr com ameaças de assassinato disparadas casualmente durante as reuniões sociais do círculo de amigos ricos do casal.

Dizer mais do que isso seria estragar os caminhos deliciosamente estúpidos que Águas Profundas toma a partir do seu segundo ato. Os furos de lógica são muitos e imensos, e as vacilantes regras internas do relacionamento de Vic e Melinda, ora cúmplices ora adversários mortais, são tão dramaticamente mal resolvidas que o espectador precisa rir das decisões cada vez mais incompreensíveis que eles tomam. Em suma, Helm e Levinson não parecem se importar muito com seus personagens, enquanto Lyne, bom… ele abertamente os despreza.

Nunca isso transparece mais do que na forma como o cineasta estrutura e filma as “festinhas” do grupo de amigos de Vic e Melinda. Nas mãos de Lyne, elas são a tentativa meio patética de um grupo de ricaços de meia-idade de se agarrarem à sua juventude - não é à toa que ele escala, para o elenco coadjuvante, nomes fortes da comédia, como Lil Rel Howery (Free Guy) e Rachel Blanchard (Peep Show). A forma como eles berram, conversam, se movem e dançam, a decoração meio decadente e até as atrações musicais que parecem saídas de uma rádio easy listening qualquer, tudo é calculado por Lyne e seus colaboradores para parecer um luxo vazio, descerebrado, e acima de tudo terrivelmente entediante (para eles, é claro - a gente se diverte pacas rindo da situação).

Adicionando uma camada a mais de sátira, proposital ou não, ao procedimento todo, Affleck e Armas não parecem entender exatamente o tipo de filme em que estão. Ele até ensaia um sorriso cínico ou outro, espremidos entre momentos profundamente sérios em que tenta balancear imponência física e perturbação mental para nos fazer duvidar o tempo todo do seu Vic. Já ela se mostra plenamente entregue a uma personagem tão inconstante que mal se sustenta como material sólido em tela, escapando pelos dedos sempre que o roteiro exige que ela mude de ideia - é um testamento ao comprometimento de Armas que cada emoção de Melinda pareça genuína, ainda que não passemos nem perto de entendê-la de verdade.

É curioso, inclusive, que esse escárnio de Águas Profundas pelos costumes e perturbações de toda uma classe social acabe consumindo até mesmo a sexualidade que ele propõe. As cenas de sexo do filme são poucas, rápidas e espaçadas, mas elas estão aqui muito mais para realçar a insipidez da vida desses adultos desocupados e desmoralizados do que para instigar ou excitar o espectador. Ninguém em Águas Profundas transa bem, ou mesmo transa por prazer. Se há tesão aqui, é tesão causado pelo tédio e sublimado em violência, e não na cama.

É verdade que, nos 20 anos que Adrian Lyne passou afastado das telas desde Infidelidade (2002), o thriller erótico como gênero se esvaziou em uma Hollywood cada vez mais estéril. Também é verdade, no entanto, que o diretor sempre foi muito mais interessado em dinâmicas de classe do que em dinâmicas de gênero ou em jogos psicossexuais - é sobre isso que Proposta Indecente, Atração Fatal e até Lolita versam, por baixo da superfície. Não deveria ser surpresa que Águas Profundas seja o que é, mas o marketing e o discurso cultural deixaram o público preparado para outra coisa (e posicionado para a decepção).

Se visto com o coração aberto e a disposição venenosa de rir de e com ele, o filme oferece 2h de entretenimento de qualidade.

Nota do Crítico
Bom