Em uma fria manhã de novembro de 2002, o estudante canadense Ghyslain Raza se deparou com uma oportunidade: sozinho no estúdio audiovisual do colégio, o jovem de 15 anos enxergou na câmera à sua frente o espelho mágico da nerdisse e executou a rotina mimética que havia ensaiado nos últimos anos: munido de um comprido apanhador de bolas de golfe, Raza – agora interpretando o sith Darth Maul – repeliu e desferiu ataques acrobáticos contra os Jedi imaginários que ameaçavam sua vida, girando como um devastador tornado rubro e arrebatando a vida dos oponentes incapazes de evitar as sentenças de seu sabre duplo.
O que a lente registrou, contudo, foi diferente.
Durante quase 2 minutos o obeso estudante rodopiou e tropeçou com a destreza de uma torradeira em chamas, emitindo efeitos sonoros com a própria boca e ensaiando poses hollywoodianas a cada recuperar de fôlego. Raza estava empolgado. Raza estava feliz.
Raza esqueceu de levar a fita VHS consigo quando terminou de brincar.
A premissa acima se desdobrou posteriormente para o fenômeno mundialmente conhecido como The Star Wars Kid – em pouco tempo, o vídeo havia chegado à internet e acumulado milhões de visualizações, montagens e memes, transformando Ghyslain Raza em uma piada global. Este que vos escreve se uniu ao coro de risadas em 2006, durante uma noite de videogames e pizza com amigos. “O mestre Jedi bêbado” dizia o título da nossa montagem favorita, adicionando efeitos especiais sobre a performance desastrada do estudante canadense. Gargalhamos até os olhos se encherem de lágrimas.
E então descemos até o porão do YouTube e lemos os comentários.
“Este nerd perdedor merecia um chute na cara.”
“Lol, olhem este gordão de merda. Pelo menos este virgem fez algum exercício.”
Não posso dizer que eu e meus amigos nos sentimos culpados pelas risadas que compartilhamos (acho saudável e filosófico o ato de se divertir com o desengonçar humano – próprio ou alheio), mas o humor da situação fora claramente manchado pela maldade que havíamos testemunhado ali. Enquanto que para meu grupo a comédia residia na inversão do arquétipo Jedi na pele de alguém tão antagônico às habilidades do personagem (algo que nós mesmos seríamos vítimas, caso tentássemos), para a maioria dos comentaristas o simples fato de Raza estar imitando uma obra ficcional que amava já era motivo de chacota violenta. Sua obesidade era apenas a cereja do bolo.
Todo grande fã de Star Wars é capaz de se identificar com a brincadeira que o jovem executou em frente à câmera – não diferente dos que fingem emplacar o gol perfeito no Maracanã ou declamar o discurso do Oscar no chuveiro de casa, nerds transformam vassouras em sabres de luz e abrem portas de shopping com um movimento das mãos desde 1977. O crime de Raza, porém, foi registrar em vídeo o ensaio da fantasia que realizamos na segurança da solidão.
É interessante lembrar, contudo, que o fenômeno Star Wars Kid ocorreu em um mundo diferente do que temos hoje. Um mundo onde a cultura nerd ainda não havia sido impulsionada pelos poderosos foguetes de Homem-de-Ferro (2008) até a área cool da cultura pop. Nossa arte se resumia a um guilty pleasure. Ainda éramos párias. Perdedores. A Estrela da Morte jazia intacta e nos encolhíamos sob a sombra do Império dos bullyies.
Nós controlamos a galáxia agora. Resta descobrir como vamos tratar os que não estão mais no poder.
- Solano
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*Affonso Solano é cocriador do Matando Robôs Gigantes, escritor do livro O Espadachim de Carvão e tem um canal no YouTube chamado Hora Super.