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Gay Nerd | A transexualidade no mundo nerd

A representação de personagens trans nas narrativas do nosso tempo

IC
24.07.2015, às 17H20.
Atualizada em 06.11.2016, ÀS 01H07

Tenho falado bastante por aqui sobre representatividade de personagens LGBTI na cultura nerd e explorado a forma como esses personagens são retratados, a frequência em que aparecem e como o cenário vem se tornando cada vez mais positivo. Pois bem, a aventura continua no que considero o texto mais difícil de escrever até aqui. Difícil por destrinchar o T da sigla LGBTI: pessoas trans. Estas, que na maioria das vezes são incompreendidas pelo próprio grupo a quem pertencem e crucificadas pelo desconhecimento - afinal, é bem comum que as pessoas não saibam a diferença entre transgênero, travesti ou drag queen. Apesar disso, personagens trans vêm ganhando o destaque e a representação complexa que merecem. E é sobre estes personagens que vou falar, com um recorte da TV e do cinema.

Para começar, preciso esclarecer o uso dos termos que causam tanta confusão. Uma pessoa transgênero é aquela que não se identifica com o corpo em que nasceu, o corpo biológico. É, por exemplo, uma mulher que nasceu em um corpo de homem ou um homem que nasceu em um corpo de mulher. A pessoa trans, além de se identificar com o gênero oposto ao que nasceu biologicamente, costuma fazer cirurgia de redesignação genital e outras mudanças corporais para completar sua identidade. Mas existe também quem não faz a cirurgia. Ser trans também não quer dizer ser homossexual. Laerte, cartunista, é gay. Entretanto, existem trans heterossexuais. Sexualidade é atração (quem você ama), enquanto identidade de gênero é como a pessoa se percebe em relação ao próprio corpo (quem ela é). Por exemplo: se uma pessoa nasce num corpo masculino e assume sua identidade feminina, se tornando uma mulher trans, e sente atração por homens, ela é heterossexual. Se sente atração por mulheres, homossexual. Por fim, existem homens trans e mulheres trans, além dos intersexuais (quem que não se identificam com nenhum gênero).

Já as travestis, geralmente tratadas erroneamente como "os travestis", também são trans, mas necessariamente homens que modificam o corpo para possuir características femininas (se identificam com o gênero) e não costumam fazer cirurgia de mudança de genital - vivem tranquilamente com a genitália masculina. As drag queens, confundidas com as travestis, são atores ou atrizes que interpretam um personagem do sexo oposto. A maioria das drag queens são gays e homens, mas existem as drag kings que são mulheres que se montam de homens. Existem também drag queens transgêneros, como Monica Beverly Hillz e Carmen Carrera. O mais importante disso tudo é que a pessoa trans tem a liberdade de dizer se se considera transexual ou travesti, pois as duas nomenclaturas não são limitantes. Assim como você, ela pode escolher quem é.

Perceba que o gênero e a sexualidade andam juntos, mas são independentes entre si. É complexo de entender no início, mas se torna simples quando nos habituamos com novas formas de compreender o ser humano, afinal somos mais complexos do que a dualidade masculino X feminino. Quem quiser ir além pode assistir a estes dois vídeos do Põe na Roda (parte 1 e parte 2) e a este outro do Para Tudo. São bem esclarecedores! Explicados os conceitos, hora de seguir no texto.

Na representatividade LGBTI são necessários não somente personagens em tramas de quadrinhos, séries, filmes e games, mas de roteiristas, atores, produtores e desenhistas LGBTI. Precisamos de pessoas trabalhando em todo o sistema de produção cultural. Pessoas trans, por conta do preconceito, têm dificuldades em encontrar empregos formais, algo que acaba levando uma grande parte para a prostituição - esta grande responsável pelo preconceito. Entre os gays, lésbicas e bissexuais é comum achar quem "tem medo" de travesti e de transexual sem nem ao menos entender a questão de gênero ou pensar no papel destas pessoas na sociedade.

Apesar deste cenário de preconceitos a serem desconstruídos, a presença trans tem crescido de forma encorpada em séries e filmes. Twin Peaks, lá nos anos 1990, apresentou Denise Bryson (David Duchovny), uma agente transexual do DEA que vai descobrindo sua identidade ao longo da trama. Temos também o clássico Priscilla, A Rainha do Deserto, de 1994, com Terence Stamp interpretando uma mulher trans; e em Friends, o pai do Chandler (Matthew Perry) é uma drag queen gay, Helena Handbasket (Kathleen Turner).

Recentemente, Felicity Huffman interpretou uma mulher trans passando pelo processo de redesignação de genital no filme Transamérica e Jared Leto representou Rayon, uma mulher trans que luta para sobreviver ao HIV em Clube de Compras Dallas. Note que são atores cisgêneros (que se identificam com o gênero em que nasceram, ou seja, Leto nasceu homem e sua identidade de gênero é masculina e Huffman nasceu mulher e se identifica com o gênero feminino) interpretando transgêneros. Embora as atuações tenham sido impecáveis, há o questionamento do por que atores trans não estão interpretando personagens trans. Provavelmente teríamos mais verdade nas tramas e representações.

Sobre esta relação com a verdade na ficção, na construção de personagens e seus dramas e no processo de envolvimento do público, a escritora Aline Valek faz uma reflexão interessante:

"Por que eu deveria me importar com uma história ou com um personagem que repete padrões e estereótipos que já estou cansada de ver? Por que eu deveria me entusiasmar com uma história onde não me vejo representada? Ou pior: com uma representação falsa feita para me agredir e me invalidar? A ficção que se recusa a usar estereótipos abre espaço para a diversidade - e, pelo fato da diversidade ser um aspecto muito verdadeiro a respeito da nossa vida, consequentemente acaba abrindo espaço também para a verdade.

Claro que não é só colocar um personagem que não seja homem branco hétero classe média e tchuns, resolvido. É mais complexo do que isso. Mesmo quando um personagem foge ao padrão ele também precisa ter verdade em si. Precisa convencer ou, da mesma forma, vai ser um fantoche e não algo que podemos identificar como uma pessoa. E, sem verdade, a ficção esfarela. […] Mas quando há verdade nas histórias que contamos, ganhamos não só pela possibilidade de sermos tocados pela mensagem contida ali, mas também pela possibilidade de nos reconhecermos nela e sentirmos que a ficção nos aceita, com todas as nossas contradições, fraquezas e diferenças."

Bobagens Imperdíveis #72, por Aline Valek.

Identificando esta fraqueza da representatividade trans no mundo da ficção, séries como Orange is the New Black, Sense8, American Horror Story: Freak Show e Transparent trouxeram uma nova abordagem para personagens transgêneros e um olhar não superficial sobre seus dramas, problemas, felicidades e processos de identidade.

Em Orange is the New Black temos Sophia Burset, uma mulher transgênero interpretada por Laverne Cox, atriz também trans. A questão da transexualidade da personagem foi representada na trama com riqueza e, inclusive, alguns momentos de seu processo de transição de Marcus, o gênero de nascimento, para Sophia foram mostrados. É inclusive por querer fazer a transição, e não poder pagar os procedimentos, que Burset rouba cartões de crédito e vai presa. Não à toa, Cox foi indicada ao Emmy por sua atuação e se tornou a primeira mulher trans a aparecer na capa da revista Time. Em American Horror Story: Freak Show, Ryan Murphy colocou a atriz trans Erika Ervin para interpretar uma personagem cisgênero. Um grande avanço!

Em Transparent, temos um ator homem, Jeffrey Tambor, representando Maura, a líder de uma família judia que se assume trans e precisa lidar com a reação de seus familiares à sua transição. É uma série delicada e que consegue explorar a complexidade do drama de um transgênero, tardiamente assumido, nas situações cotidianas. Davina, amiga transexual que ajuda Maura no processo de mudança, é interpretada por Alexandra Billings, uma atriz transgênero. A escritora e criadora da série, Jill Soloway, que também retratou o conflito de identidade de gênero em United States of Tara, convidou a cantora trans Our Lady J para compor a mesa de roteiristas na segunda temporada da série. É uma trama sobre trans com uma roteirista trans colaborando para uma representação mais fiel e verdadeira destes personagens. Além disso, a inspiração para Transparent vem do pai de Soloway, que assumiu sua identidade transgênero em 2011. Amor, minha gente, muito amor! 

Minha favorita desta lista é Sense8, série criada pelos Irmãos Wachowski e que tem Lana, uma mulher trans, no comando. Nomi Marks, personagem trans interpretada pela atriz trans Jamie Clayton não passa pela transição de identidade na série, mas sofre o preconceito da família que não aceita sua condição. A mãe insiste em chamá-la de Michael, seu nome de batismo. Na trama, além de explorar a fluidez das experiências psíquicas e da própria sexualidade (vide Lito [gay] transando com Will [heterossexual]), Lana Wachowski explora no roteiro o momento em que a pessoa trans descobre que há algo de errado com seu corpo. A outra sacada é que Nomi é uma protagonista feminista e ativista, o que colabora ainda mais para apresentar transgêneros como personagens fortes em busca de uma voz. E ter uma trans construindo uma personagem trans é exatamente o que Aline Valek fala sobre verdade na ficção.

Ainda sobre Sense8, a Netflix Brasil resolveu investir na discussão do tabu que é a transexualidade e lançou esta semana um documentário com a modelo Lea T, trans brasileira, para falar sobre o assunto e encher nossos corações de amor, conhecimento e, claro, representatividade. Assista:

Como vimos, o cenário atual é bem positivo e rico no quesito bons personagens e boas tramas explorando o assunto, além de pessoas trans produzindo estas tramas. Entretanto, há uma defasagem: faltam personagens homens trans, as mulheres biológicas que se identificam com o gênero masculino. É uma pena vermos tão poucos, recentemente apareceram em Glee e Orphan Black, mas espero que com o tempo tenhamos representatividade de homens trans no mundo nerd.

Por fim, é isso galere. Os LGBTI estão ganhando cada vez mais espaço no mundo do entretenimento e eu não poderia estar mais feliz por isso. E você, conhece algumx personagem trans de quadrinhos, games, filmes, séries e quer falar sobre? Comente.

Um bayjo e um quayjo!

P.S. 1: Recentemente o Porta dos Fundos fez um vídeo bem polêmico e ofensivo sobre travestis. Gregório Duvivier pediu desculpas publicamente pelo erro.

P.S. 2: No mundo do funk, inclusive, existe uma Mc travesti e uma MC trans.

P.S. 3: Para saber mais sobre transexualidade, siga a Travesti reflexiva no Facebook.

P.S. 4: Conheça Maria Clara Araújo, mulher trans que conseguiu entrar na universidade. A história é emocionante!

P.S. 5: Este vídeo aqui, com John Oliver, dá uma clareada nos direitos trans de forma bem humorada. Assista, salve nos favoritos e compartilhe com os amiguinhos.

Adotamos a sigla LGBTI por ser a mais completa para se referir à diversidade de gênero e identidade sexual nos dias atuais. O T se refere a "TRANS" (travestis, transexuais e transgêneros) e o I a "Intersexual", pessoas com características de ambos os sexos e que podem se reconhecer como homem ou mulher, independente das características físicas. Esta definição é contribuição do leitor Vinícius.

*Gay Nerd é uma coluna quinzenal que mistura nerdices aos temas LGBTI


Isaque Criscuolo é editor do Imerso, nerd, adora um lipsync e acredita que menos é mais