O chicote rasgou o ar denso da catacumba. Com um estalo seco, a mão do esqueleto se estilhaçou em dezenas de pedaços, perdendo o controle da espada enferrujada. A flecha o acertou logo em seguida, penetrando-lhe a órbita direita com precisão – como uma marionete sem mestre, a criatura se desmontou sobre o chão de rocha, ecoando o som dos ossos soltos e anunciando a derrota.
- De volta ao inferno, maldito! – Thal berrou, dando um passo à frente e descendo o machado sobre o crânio do inimigo caído. Uma nuvem de poeira se ergueu com o golpe, prejudicando ainda mais a nitidez do cenário lúgubre.
- Não desperdice seu fôlego, bárbaro, meu tiro já havia se encarregado do serviço – a elfa sugeriu, se aproximando na retaguarda. Nas paredes do corredor, sombras brincavam com o fogo das tochas.
- Homens adoram ter a última palavra, Arna, esqueceu? – a caçadora humana provocou, enrolando o chicote de couro.
- Fale pelos seus homens, Mina – a arqueira retrucou, ajeitando os cabelos brancos para trás das orelhas compridas. – Minha raça está longe de tamanha... insegurança.
Apoiando a bota no crânio do esqueleto, Thal puxou a lâmina do machado para cima, desprendendo-a da rachadura.
- Deboche o quanto quiser, elfa – o musculoso humano falou, se virando para encarar as companheiras. – Flechas de madeira são para catar frutas; monstros são derrotados com aço e coragem.
- Arna está certa, Thal – Mina disse, se agachando sobre a pilha de ossos. – Corpos reanimados tombam assim que recebem um "golpe fatal" simplesmente porque acham que realmente receberam um golpe fatal... Seus espíritos creem que foram mortos novamente, por isso o encantamento se desfaz.
- Falando em encantamentos, creio que nosso anfitrião nos aguarda além daquele portão – a arqueira opinou, apontando para a estrutura de ferro ao final do corredor. Um clarão amarelo espreitava por entre as frestas, provocando a curiosidade do trio.
Meneando o rosto anguloso em concordância, Thal segurou a empunhadura da arma com mais firmeza e prosseguiu pela passagem. Arna seguiu em seu encalço, caminhando com a elegância que lhe era típica.
- Descanse em paz, guerreiro – Mina murmurou, encarando as órbitas negras da caveira. Preso em seu sorriso eterno, o cadáver silencioso a encarou de volta.
Thal escancarou o portão com um jogar do ombro, anunciando o violento adentrar na câmara mortuária. A elfa surgiu logo atrás; tensionado, seu arco dourado buscou o salão oval como uma águia faminta, encontrando a presa ao centro do aposento:
- A insistência de vocês é admirável – o feiticeiro declarou, debruçado sobre a grande mesa cerimonial. Arrogante, ele mantinha os olhos presos às páginas do livro ali apoiado, desprezando a presença dos recém-chegados. Pergaminhos em línguas proibidas se amontoavam a seus pés descalços, roçando no longo manto puído que lhe cobria o corpo.
- Não podemos permitir que conclua o ritual, Meregor – Mina falou, juntando-se aos companheiros no portão. Seu chicote serpenteava no solo, pronto para o comando.
O necromante ergueu o rosto magro na direção dos três. Sua figura pálida e doentia refletia o apreço pelas artes ocultas que o acompanhavam há anos.
- O almoço está pronto – ele sussurrou, movendo os lábios finos.
Confusos, os três aventureiros se entreolharam.
- Que tipo de jogo é esse, vilão? – indagou o bárbaro, contraindo o peito musculoso.
"O ALMOÇO ESTÁ PRONTO, MENINOS", ecoou a voz sobrenatural do feiticeiro, desta vez através da câmara inteira.
Arna foi a primeira a tombar. Roubada de sua consciência, a elfa perdeu o equilíbrio e desabou contra o chão, espalhando arco e flechas sobre a rocha fria. Mina e Thal a acompanharam em seguida.
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- Meninos, daqui a pouco vocês continuam – Claudia disse para os filhos.
Ajoelhados sobre o carpete marrom, os três devolveram um olhar de decepção para a mãe, que os observava paciente da porta do quarto. Sobre a cama mais baixa do beliche, quatro bonecos de Comandos em Ação jaziam sem vida, paramentados com criatividade; elásticos, fita isolante e palitos de dente complementavam o que a imaginação exigira para a aventura do dia.
- Tem aipim hoje? – o irmão do meio perguntou, se levantando junto ao caçula.
- Tem sim, venham fazer o prato – Claudia confirmou, fazendo sinal para que eles a seguissem para a sala.
Antes de deixar o aposento, o mais velho do trio se interrompeu ao lado da mesa do computador. Próximo do teclado, um pequeno livro de bolso dormia fechado, aguardando o retomar da leitura. Uma criatura horrenda ilustrava a capa, chafurdando o corpo obeso na lama escura de um enorme poço de pedra. "O Calabouço da Morte" indicava o título abaixo do nome "Ian Livingstone".
Sorrindo, o menino saiu do quarto, sentindo o cheiro do aipim frito.
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Affonso Solano (www.twitter.com/affonsosolano) é cocriador do Matando Robôs Gigantes, escritor do livro O Espadachim de Carvão e tem um canal no YouTube chamado Hora Super.