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Terry e os piratas

Terry e os piratas

19.03.2002, às 00H00.
Atualizada em 07.11.2016, ÀS 06H01
Nas histórias em quadrinhos, poucos autores conseguiram envolver tanto seu público quanto o norte-americano Milton Caniff. Para os leitores de Terry and the Pirates, nunca foi fácil distinguir com exatidão a realidade da ficção.

Javier Coma, o estudioso espanhol das Histórias em Quadrinhos, revela que, em 1941, Caniff levou os leitores das tiras diárias e das páginas dominicais de Terry and the Pirates a acompanhar o sofrimento da simpática personagem Raven Sherman, atirada de um caminhão em alta velocidade. Após vários dias de lenta agonia, ele a fez pronunciar suas últimas palavras perante o entristecido e, naquele momento, totalmente impotente Terry, o protagonista da série.

A reação do público superou todas as expectativas, surpreendendo o próprio autor. Foram mais de mil e quatrocentas cartas, algumas lamentando a morte da personagem, outras indignadas com a decisão de deixá-la morrer. Na mesma semana, os alunos da Loyola University, de Chicago, perfilaram-se e guardaram um minuto de silêncio em memória da falecida Raven, enquanto um jornal diário da Pensilvânia publicava a notícia como se fosse um acontecimento real.

Muito provavelmente, o próprio Caniff não imaginava que um fato ficcional, quadrinhístico pudesse ter tanta repercussão, a ponto de obrigá-lo, inclusive, a explicar os motivos de sua decisão em uma estação radiofônica. Naquela época, os quadrinhos, principalmente os de publicação diária nos jornais, ocupavam, no imaginário popular, o papel que hoje têm as telenovelas.


Primeira tira de Terry e os Piratas

DEDICAÇÃO À NONA ARTE

Milton Caniff tinha 27 anos quando recebeu sua grande oportunidade na área de quadrinhos. Tendo estudado Belas Artes e se diplomado na Ohio State University, dedicou-se ao teatro na juventude. Felizmente, o chamado da nona arte foi mais forte, levando-o a abandonar o teatro e a se dedicar de forma profissional à produção de histórias em quadrinhos. Ele o fez com sucesso bastante relativo até 1934, quando recebeu do Chicago Tribune–Daily News Syndicate a incumbência de criar uma série que trouxesse peripécias em terras exóticas e pudesse competir com as então existentes, distribuídas pelo King Features Syndicate. Tinha que inovar, buscando, para seus heróis, um ambiente ainda virgem nas histórias em quadrinhos. Sem dúvida, não era uma tarefa fácil. Afinal, os lugares mais interessantes já pareciam estar todos ocupados: a África já era ficcionalmente povoada pelo Tarzan de Harold Foster; no Sudeste da Ásia estava Jungle Jim (Jim das Selvas), de Alex Raymond, autor que também dominava o espaço com Flash Gordon; nas grandes cidades, por seu lado, pontificavam personagens como Dick Tracy, de Chester Gould e Secret Agent X-9 (Agente Secreto X-9), também de Alex Raymond. Entre os ambientes ainda disponíveis, Caniff escolheu os mares da China como palco para as aventuras do jovem Terry Lee e seu companheiro Pat Ryan, aos quais, pouco a pouco, agregou um variado e fascinante grupo de coadjuvantes.

COMEÇAM AS AVENTURAS


Terry e Prat

Dragon Lady

Normandie Drake

Burma

Male Call

Terry de George Wunder

Assim, em 22 de outubro de 1934, iniciavam-se as tiras diárias de Terry and the Pirates (Terry e os piratas), às quais se seguiriam, pouco depois, em 9 de dezembro do mesmo ano, as páginas dominicais. Eram duas séries independentes de aventuras que posteriormente foram unificadas, em 1936. Tinham como protagonistas os já citados Terry Lee, então ainda pré-adolescente, e o inglês Pat Ryan, seu companheiro de aventuras e também uma espécie de tutor. Era Pat que atraía, para si, os momentos mais perigosos e os gestos mais ousados, além de ser o preferido entre as personagens femininas.

Na primeira história, ambos partem para a China em busca de uma mina de ouro cuja localização consta de um mapa legado pelo avô do menino. A partir daí, sucedem-se os encontros com os piratas dos rios asiáticos, numa variedade de aventuras e lutas sem quartel que só tomariam um outro rumo, com maior agressividade política e matizes quase puramente racistas, durante a Segunda Guerra Mundial.

HERDEIRO DE UMA LONGA TRADIÇÃO

Terry and the Pirates, pelo menos em sua primeira fase, retoma a tradição do que se convencionou chamar como boy-strip, um ramo das kid-strips (histórias em quadrinhos sobre crianças) que reservava o destaque das séries para garotos em idade pré-adolescente. Originalmente, na realidade, as personagens chamavam-se Dickie Dare e Dan e foram criados em 1933 para uma saga medieval voltada ao público infanto-juvenil.

De certa forma, Caniff reaproveitou-os quando a nova história lhe foi solicitada . Assim, pode-se dizer que o jovem Terry é herdeiro direto de duas séries típicas do gênero boy-strip: Jerry on the Job, de Walter C. Hoban (1913) e Freckles and his Friends, de Carl Ed (1915). Com esta última, aliás, guarda também a semelhança do progressivo envelhecimento do protagonista, outra característica distintiva da criação de Caniff.

Também distintivas são as mulheres que aparecem em Terry and the Pirates, a começar pela enigmática e sexy vilã Dragon Lady, euroasiática de estonteante beleza, claramente inspirada na atriz alemã Marlene Dietrich, que auxiliava os piratas nos diversos interesses românticos dos protagonistas, como a sofisticada Normandie Drake, a ambígua Burma e a adolescente April Kane. Caniff sempre teve um cuidado muito especial tanto com a elaboração das personagens femininas, quanto na caracterização visual de lugares, embarcações, armas etc.

PRECIOSISMO E IDEOLOGIA

Aos poucos, no transcorrer da série, os detalhes vão adquirindo maior consistência devido às pesquisas do autor em bibliotecas, museus e centros especializados, buscando se documentar sobre um país que não conhecia em profundidade. A esse preciosismo, vem se juntar a influência de Noel Sickles, com quem Caniff dividiu o estúdio durante a década de 30. Certamente, Noel teve grande peso na definição de seu estilo cinematográfico de fazer quadrinhos, no qual proliferavam imagens da mesma cena vista sob diferentes ângulos, personagens retratadas apenas por sua silhueta e a ação definida por contrastes de claro e escuro.

Para melhor compreender a obra de Caniff, além do rigor no tratamento da imagem, é preciso conhecer sua postura ideológica, caracterizada pela forma como retratava os setores enriquecidos e aristocráticos da sociedade. Seus representantes eram normalmente hipócritas, puritanos, presos a convenções sociais e, inclusive, despidos de quaisquer escrúpulos morais na busca de seus objetivos. Isto só se atenua um pouco com o início da Segunda Guerra Mundial, que leva o centro da narrativa para o âmbito do conflito entre nações: Terry é inscrito na escola de cadetes da aviação, Pat Ryan transforma-se em agente secreto a serviço da marinha norte-americana e Dragon Lady passa a trabalhar para a resistência costeira. A partir daí, as ações bélicas predominam na série.

Durante a Guerra, Caniff também colaborou gratuitamente com o Camp Newspaper Service, órgão responsável pela distribuição de materiais às várias revistas e boletins destinados aos soldados norte-americanos, desenvolvendo a estonteante morena Miss Lace na série Male Call. Nestas aventuras, ele explorava a proteção quase maternal da pin up aos pobres combatentes, afastados das namoradas que haviam permanecido em sua terra natal. A bondosa Miss Lace sempre tinha para eles um carinhoso beijo e palavras de encorajamento. A série foi publicada até março de 1946.

O DECLÍNIO APÓS CANIFF

Em dezembro desse mesmo ano, Caniff encerrou seu trabalho em Terry and the Pirates, passando a história para as mãos de George Wunder, com quem ela permaneceu até fevereiro de 1973. Durante esse período, os protagonistas engajaram-se, cada vez mais, a serviço da guerra fria e do imperialismo norte-americano, empobrecendo uma das obras mais importantes do quadrinho de aventuras que o mundo já viu. No entanto, esse traço melancólico não representaria o final da odisséia de Terry and the Pirates. Após o encerramento do período George Wunder, a história ficou por mais de vinte anos longe das páginas dos jornais, voltando a ser publicada a partir de 1995, com novos autores e com diferentes caracterizações dos personagens. Nessa nova versão, o roteirista Jim Clark e o conceituado artista Dan Spiegle buscam manter o estilo narrativo e gráfico de Caniff, mas situam a história no presente e dão um aspecto futurista a personagens, tramas e diálogos.

UMA NOVA SÉRIE


Steve Canyon

Steve Canyon mais velho

Milton Caniff - Spirit
of Flight Award

Milton Caniff sempre teve marcante popularidade junto a seu público. Devido a desentendimentos com Tribune Syndicate, que não queria lhe conceder parte dos direitos autorais sobre os personagens criados durante o período de seu contrato, decidiu se afastar de sua obra mais conhecida, Terry and The Pirates, e lançar Steve Canyon, série sobre a qual manteria total controle, logo se viu diante de estrondoso êxito de público e crítica. Ele a desenhou por mais de quarenta anos.

No mesmo ano em que criou Steve Canyon, Caniff foi o primeiro autor a receber da National Cartoonist Society, organização que ajudou a criar e da qual foi presidente no período 1948-49, o prêmio Reuben, anualmente concedido ao seu membro de maior destaque. Nisso, há também um fato curioso, pois ele recebeu a distinção do ano de 1946 para uma personagem que só atingiria as páginas dos jornais em 1947. É mais ou menos como conceder o Oscar de 2002 para um filme que só será lançado em 2003.

Esse foi apenas um entre os mais de quarenta prêmios que recebeu durante sua carreira, dos quais podem destacar-se o Goodwill Award, por sua obra em favor dos mutilados, e a nomeação de “Homem do Ano”, recebida da New York Philantropic League, em reconhecimento por seus serviços em favor da Humanidade. Isto para não falar das várias medalhas que recebeu da Força Aérea Norte-Americana, da qual sempre foi um grande entusiasta e que retratou com freqüência em sua obra quadrinhística. Mas, mais que tudo, foi com a denominação de “Rembrandt dos Quadrinhos” que se tornou mundialmente conhecido.

MESTRE PARA OS MESTRES

Caniff morreu em abril de 1988, aos 81 anos, tendo dedicado mais de meio século à arte dos quadrinhos. Reconhecidamente, influenciou artistas como Joe Shuster, Jack Kirby e Will Eisner, bem como centenas de autores no mundo inteiro. Sua influência também se estendeu ao cinema, com nomes como Orson Wells e Federico Fellini, ambos tendo se declarado grandes fãs do autor. Boa parte de sua arte original e documentos pessoais é mantida pela Ohio State University Library for Communication and Graphic Arts, em Columbus, Ohio. Desta forma fica garantida a lembrança da contribuição deste grande autor à arte dos quadrinhos.

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