Enquanto pessoa adulta com acesso à internet sempre acreditei estar bem ciente da importância que a Netflix assumiu no cenário da chamada “cultura pop”. Já fiquei feliz quando resgataram programas que gostava e estavam cancelados, já acompanhei discussões sobre como o atual modelo de streaming afeta o conceito tradicional de cinema, já me irritei com o que parece ser uma competição nas redes sociais pra ver quem termina primeiro a mais recente temporada da mais nova série que saiu – “passei a noite em claro e deixei de levar minha avó doente no médico mas terminei Stranger Things antes de vocês!!!!”.
Mas foi com Birdbox, o filme com Sandra Bullock onde uma mulher e seus filhos precisam atravessar a cidade vendados para evitar o ataque de entidades sobrenaturais, que finalmente caiu a ficha da capacidade absurda que empresas como a Netflix tem de pautar as discussões no cenário cultural dos anos dois mil e dez.
Primeiro porque foi o primeiro filme até hoje em que eu tomei um spoiler da minha mãe. Sim, da minha mãe. Essa gentil senhora de 60 anos, nascida no interior do Espírito Santo, que me colocou no mundo, me ensinou a amarrar os sapatos e sempre esteve do meu lado nas melhores e nas piores situações, me contou, sem dó nenhum e da maneira mais casual possível, basicamente tudo que acontece no final do filme. Quem fica vivo, quem morre, o que acontece, qual é o plot twist, a coisa toda.
Mas ela não fez isso por maldade, como a pessoa que contou - SPOILER! - que Han Solo morria em Despertar da Força, pessoa essa que não apenas jamais vou perdoar como vou impedir que meus filhos sejam amigos dos filhos dela. Minha mãe me contou porque ela acreditou, sinceramente, que todo mundo já tinha visto o filme, já que, afinal, é o filme da Netflix e na cabeça dela todo mundo está vendo os filmes da Netflix. E claro, é interessante ser o objeto da discussão dos hipsters, é bacana ser trending topic entre os jovens do Twitter. Mas quando você é o tema de discussão na roda das senhorinhas da quermesse da igreja? Aí, meu amigo, aí você sabe que as coisas ficaram sérias.
E depois, é claro, pelo “Bird Box Challenge”. Vivemos, como todos sabem, em um mundo perigoso. As ruas são violentas, guerras acontecem em todo o planeta, o aquecimento global é real e cada dia o mais simples ato de colocar o pé pra fora de casa, mesmo com toda a atenção e cuidado possível, se torna uma aventura. O quão impressionadas então as pessoas precisam estar com um filme para decidirem que sim, vale a pena sair vendado pelas calçadas de uma grande cidade apenas para experimentar na pele um pouco da história dele?
Isso pode também ser menos um tributo à qualidade do filme e mais um sinal de que vivemos numa sociedade tão confusa e desorientada que as pessoas estão dispostas a correr risco de atropelamento apenas para ganhar 1.000 likes em um vídeo no Instagram? Com certeza, claro, mas acredito que todos nós vamos dormir muito melhor se pensarmos que o “Bird Box Challenge” é resultado de um filme de sucesso e não do óbvio colapso emocional de toda uma geração com muito acesso à internet e poucas perspectivas de vida. Talvez a ideia de sair vendado na rua tenha menos a ver com a Sandra Bullock fugindo de monstros e mais a ver com a Lana Del Rey querendo estar morta.
Mas de toda essa discussão, seja sobre as mudanças causadas pelas grandes empresas de streaming no nosso cenário cultural, seja pelo que motiva alguém a andar vendado pelas ruas da cidade, acredito que o mais importante de tudo é o alerta de que em termos de spoiler, no ano de 2019, ninguém mais está seguro. Você pode se achar o antenado das séries e tomar um da sua mãe, deixar pra ver o filme na segunda semana e a sua tia te contar o final, ouvir do seu avô um “se já saiu a segunda temporada nada da primeira é spoiler, querido”. E num ano com Game of Thrones, Vingadores e Star Wars, talvez em dados momentos a ideia de sair por aí vendado para evitar ver certas coisas e receber certas informações não pareça tão absurda assim.
